O Cinema Ideal faz um ano, sem saber se fará dois

Por fim, em 2014, uma sala de cinema abriu em Lisboa em vez de fechar. Uma inconsciência: sabem quanto custa abrir uma sala de cinema? Festa de aniversário, a partir de hoje, no número 15 da Rua do Loreto.

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Teve aura de acontecimento, a inauguração do Cinema Ideal: o passeio em frente ao número 15 da Rua do Loreto encheu-se de gente, como a frente de um bar (mas era Agosto, não era suposto estarem de férias noutro lugar qualquer?), enquanto os pedreiros concluíam os trabalhos. Do outro lado da rua, outra concentração de pessoas olhava para o que se passava em frente, alguns com as câmaras dos telemóveis ao alto. John Wayne estava em cartaz. Joaquim Pinto e Nuno Leonel trouxeram maçãs para oferecer no final da projecção do filme E Agora? Lembra-me. Quando fora a última vez que tantos cineastas e cinéfilos tinham estado juntos no mesmo lugar?

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Teve aura de acontecimento, a inauguração do Cinema Ideal: o passeio em frente ao número 15 da Rua do Loreto encheu-se de gente, como a frente de um bar (mas era Agosto, não era suposto estarem de férias noutro lugar qualquer?), enquanto os pedreiros concluíam os trabalhos. Do outro lado da rua, outra concentração de pessoas olhava para o que se passava em frente, alguns com as câmaras dos telemóveis ao alto. John Wayne estava em cartaz. Joaquim Pinto e Nuno Leonel trouxeram maçãs para oferecer no final da projecção do filme E Agora? Lembra-me. Quando fora a última vez que tantos cineastas e cinéfilos tinham estado juntos no mesmo lugar?

Passado um ano – abriu a 28 de Agosto –, a sobrevivência do Cinema Ideal está em risco, diz o director Pedro Borges. “Estamos em contagem decrescente. Temos até ao final do ano para resolver o buraco financeiro que isto implicou.”

Pedro Borges admite que as suas expectativas foram demasiado optimistas: esperava mais espectadores (50 mil no primeiro ano; a contagem final anda pelos 40 mil), mais apoio – do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), da Secretaria de Estado da Cultura, de “instituições com ligações à cultura, em particular a Gulbenkian”, de uma empresa. “O problema é que em Portugal há grandes empresas que gastam muito dinheiro em imagem e comunicação, mas basicamente é para financiar clubes de futebol”, diz.

Continua a acreditar – ou a querer acreditar – que os apoios virão. Se querem resultados, ele fez o trabalho de casa: 51 filmes estreados, 21 dos quais portugueses, muitos em regime de exclusividade, e, talvez o que seja mais importante, com um tempo de longevidade em sala que outros cinemas não permitem. “A questão é os filmes durarem e existirem em público.” Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa, esteve sete semanas em exibição. Os Verdes Anos e Mudar de Vida, filmes de Paulo Rocha em novas cópias digitalmente restauradas, estiveram quatro semanas. A versão longa, de três horas, de Os Maias, esteve dez semanas. E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto, seis semanas. 

“Há pessoas que não vão ver logo os filmes. Hoje em dia, com esta coisa de estreia, salta, estreia, salta, há filmes que só assim chegam a ter existência”, nota. “As pessoas são cada vez mais desconfiadas nas escolhas que fazem. O público menos cinéfilo, que não vai ver todos os filmes, fica à espera – e depois vem porque alguém viu e recomendou. A terceira semana aqui é melhor do que a primeira. As pessoas precisaram desse tempo para cá vir.”

O último cinema de bairro
O Ideal é actualmente a única sala de cinema na zona histórica de Lisboa. Essa centralidade foi deliberada e tida como uma mais-valia – pensando que haveria, entre as multidões que à noite invadem o Largo Camões, os restaurantes e os bares do Bairro Alto, quem quisesse ver cinema, antes, durante ou depois. Mas o Ideal – o mais antigo cinema de Lisboa – também era o único cinema de bairro que restava na cidade, depois de todos os outros terem sido desmantelados e convertidos noutro tipo de espaço comercial. O Cinema Promotora, em Alcântara, é hoje um banco; o Royal, na Graça, é um supermercado Pingo Doce; o Lumiar foi arrendado à Igreja Universal do Reino de Deus. O Ideal – antigo Salão Ideal, “piolho do Loreto”, Cinema Camões ou Cine Paraíso, conforme as épocas – nunca deixou de ser cinema, nem quando, na sua última encarnação, se dedicava à exibição de pornografia. Não há muitos espaços disponíveis em Lisboa que possam ser uma sala de cinema, diz Pedro Borges. “Um cinema precisa de ter um pé direito muito alto, para fazer a sala. Mas em Lisboa não sobrou absolutamente nada, sobretudo nesta zona histórica da cidade.”

O edifício é propriedade da Casa da Imprensa e os inquilinos anteriores – que exploravam o cinema pornográfico – não estavam particularmente interessados em sair. As primeiras reuniões de Pedro Borges com a Casa da Imprensa tendo em vista o projecto de um cinema naquele local são em Dezembro de 2010. Mas só no final de 2012, com a entrada em vigor da nova lei de arrendamento urbano, é que as negociações com os anteriores inquilinos desbloqueiam, e eles aceitam sair com uma indemnização. O espaço fica livre em Novembro de 2013. As obras começam em Abril e duram 15 semanas. Até ao último minuto.

“O estado da sala era miserável. Levámos isto tudo completamente ao osso. Foi preciso fazer tudo de raiz”, diz Pedro Borges. A nova sala foi projectada pelo arquitecto José Neves, Prémio Secil de Arquitectura 2012 e um cinéfilo. Projectos, obras, equipamento e montagem custaram 600 mil euros. “O problema destas coisas é que é preciso imenso dinheiro à cabeça.” Não existe um apoio do ICA para incentivar o aparecimento de novas salas de cinema. O apoio à exibição independente, atribuído anualmente por aquele instituto público, é de 25 mil euros por sala, destinado à programação. “Só que a realidade é que estamos a usar esse dinheiro para pagar as obras”, diz Pedro Borges. Deveria existir uma linha de créditos bonificados – em que parte dos juros seria suportada pelo Estado – ou subsídios a fundo perdido, não reembolsáveis, para apoiar projectos de raiz, defende. O apoio do ICA à exibição é muito reduzido e permanece estagnado nos mesmos valores há anos, continua Borges, que também é distribuidor e produtor na Midas Filmes.

Troca por troca
Quando abriu o Cinema Ideal, não sabia já...

“... no que me ia meter? Sim”, atalha Pedro Borges. “Mas há anos que no ICA se fala na alteração das regras de apoio à exibição. Toda a gente diz: ‘Pois, é preciso salas de cinema’. Há três anos e meio que se começou a discutir uma nova lei do cinema, com este Governo.” A nova lei foi aprovada em Setembro de 2012. “E o que acontece é que ao fim de quatro anos estamos praticamente iguais ou pior. As expectativas que se criam são permanentemente defraudadas. Atirou-se com esmolas para calar os descontentes, atirou-se com dinheiro para cima dos problemas. [O financiamento do ICA] passou de 12 para 16 milhões, mas não se resolveu nada”, conclui.

“E há coisas que são chocantes. Este ano, Sete Pecados Rurais [filme de Nicolau Breyner] foi ao ICA levantar 300 mil euros de subsídio automático [atribuído segundo critérios quantitativos, em função do número de espectadores, ao produtor do filme, para investir numa nova obra]. Se comparar isso com o que existe para a exibição independente [175 mil euros em 2014], percebe que é um disparate absoluto. O Pátio das Cantigas para o ano vai estar a bater à porta do ICA.”

O Ideal custa quase dez mil euros em encargos fixos mensais – entre créditos bancários e renda, descontando despesas com pessoal e funcionamento. A Câmara Municipal de Lisboa atribuiu um apoio de 50 mil euros em 2014. E Pedro Borges investiu, pessoalmente, 75 mil euros de uma herança paterna. “Não acho que na cultura tenhamos de andar de mão estendida. Sempre que peço dinheiro a alguém, por exemplo à Câmara, é troca por troca: “Vocês dão-me um xis de apoio e eu abro um cinema, fecho a pornografia no Chiado, ponho ali não sei quantos filmes portugueses, faço sessões para crianças de borla, faço sessões para idosos de borla.”

Não é só o cinema que está em risco se não houver um alívio financeiro, é a própria Midas Filmes, diz.

Há coisas que não se fizeram por limitações financeiras – por exemplo, exibir mais filmes clássicos, fazendo jus ao desejo inicial de ter permanentemente reposições e cinema contemporâneo em cartaz. A cafetaria, planeada desde a origem do projecto, só agora abriu, na sobreloja, por cima do cinema, partilhando o espaço com a livraria Fyodor (entrada pelo número 13 da Rua do Loreto). É aí que neste fim-de-semana se ensaia uma festa de primeiro aniversário com happy hour e bar aberto a partir das 18h30, concerto de jazz no sábado às 22h, e sessões especiais com os dois últimos volumes de As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, com apresentação do realizador, às 19h30. Não é uma comemoração, avisa Borges, isso acontecerá ao longo de Setembro.

Uma novidade: na última semana, o logótipo do cinema foi reproduzido na calçada portuguesa à entrada. “Foi uma ideia que surgiu em Junho do ano passado, a meio das obras. Dantes as lojas ditas sérias em toda a Lisboa tinham o seu logótipo na calçada, era uma coisa nobre”, lembra o director.

Pode parecer um pormenor, mas diz alguma coisa sobre a diferença do Cinema Ideal, em relação às outras salas e em relação aos outros estabelecimentos que o circundam, rendidos à banalização trazida pelo turismo. Se em 2010 ou 2013, abrir nesta zona da cidade parecia promissor, Borges nota que entretanto o turismo massificado mudou as regras. “Há alturas em que não se consegue andar pelo passeio. E os tuk-tuks... Há pessoas que vêm muito menos a esta zona da cidade do que vinham há dois ou três anos. Por causa deste projecto, mudámos o nosso escritório para aqui há três anos e meio, e nessa altura esta zona não tinha nada a ver com o que é hoje. Está a deixar de ser um sítio por onde as pessoas passam, onde vêm com gosto.”

Pedro Borges trabalhou 15 anos na Medeia Filmes, com Paulo Branco, concentrando-se sobretudo na exibição e programação das salas da empresa – que, entre o King e Saldanha Residence, chegaram a ser 16 salas em Lisboa, sete no Porto, três em Coimbra, entre outras cidades. Dito de outro modo: não se pode apontar-lhe ingenuidade ou falta de experiência. Quando muito, teimosia.

“É complicado ser-se demasiado optimista. Mas, neste tipo de actividade, sem o mínimo de inconsciência, meia bola e força, e amanhã logo se verá, não se consegue fazer nada.”