Allen Halloween: Filho largado no mundo

Allen Halloween está de volta. Terceiro álbum, terceiro clássico. Ninguém diz o que ele diz, como ele o diz. Híbrido: Portugal ao espelho, o bairro ao espelho, Halloween ao espelho.

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Híbrido é o álbum do regresso de Allen Halloween a Odivelas: “Agora parece que canto mais e que as palavras deslizam melhor” SUZANA LUZIR

Portugal 2015. Ninguém o mostra assim. Sem subterfúgios, com uma riqueza de cronista, talento de rapper com muita vida, sabedoria suficiente para nunca recorrer ao facilitismo do preto-e-branco. É Halloween todos os que canta? O bandido velho, o Zé Maluco, o Gangsta junkie, o miúdo que, no recreio da escola, esvaziará a pistola no bully que o humilhou e na Lola que o ignorou? É e não é. Rapper incrivelmente atento a todos os detalhes do que o rodeia, Halloween é o contista inspirado, capaz de perceber como criar um fio narrativo, uma personagem, uma conclusão que fuja a clichés (e foge sempre). “O [José] Saramago disse numa entrevista que ninguém se pode fechar num sítio e começar a produzir arte a partir daí. É verdade. A arte é sempre minha, mas vais ao mundo, pegas no mundo, transformas e mandas cá para fora." É isso que tem feito, enquanto vê o mundo mudar e enquanto ele próprio vai mudando no mundo. “Não vale a pena estar a construir uma tese para deitar abaixo a minha tese antiga, mas, querendo ou não, vamos mudando. Outro conhecimento, outra responsabilidade. Vale a pena fazer um álbum quando há essa mudança, quando tens coisas novas a dizer."

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Portugal 2015. Ninguém o mostra assim. Sem subterfúgios, com uma riqueza de cronista, talento de rapper com muita vida, sabedoria suficiente para nunca recorrer ao facilitismo do preto-e-branco. É Halloween todos os que canta? O bandido velho, o Zé Maluco, o Gangsta junkie, o miúdo que, no recreio da escola, esvaziará a pistola no bully que o humilhou e na Lola que o ignorou? É e não é. Rapper incrivelmente atento a todos os detalhes do que o rodeia, Halloween é o contista inspirado, capaz de perceber como criar um fio narrativo, uma personagem, uma conclusão que fuja a clichés (e foge sempre). “O [José] Saramago disse numa entrevista que ninguém se pode fechar num sítio e começar a produzir arte a partir daí. É verdade. A arte é sempre minha, mas vais ao mundo, pegas no mundo, transformas e mandas cá para fora." É isso que tem feito, enquanto vê o mundo mudar e enquanto ele próprio vai mudando no mundo. “Não vale a pena estar a construir uma tese para deitar abaixo a minha tese antiga, mas, querendo ou não, vamos mudando. Outro conhecimento, outra responsabilidade. Vale a pena fazer um álbum quando há essa mudança, quando tens coisas novas a dizer."

Híbrido é Halloween agora, no país que o rodeia agora. Pai de três filhos, estudioso da Bíblia, músico profissional desde a edição de Árvore Kriminal, o álbum que, com canções como Drunfos, Debaixo da ponte ou A noite da Lisa, lhe deu em 2011 uma carreira independente. Não é santo nem demónio. Isso seria demasiado fácil. É alguém em luta consigo próprio, e expõe-no em música que ilustra essa condição de forma gráfica, desarmante, recheada de retratos reais e de parábolas intemporais. “Há situações na vida em que sabes que o certo é perdoar e seguir em frente, mas ainda não consegues perdoar mesmo, não consegues engolir. É isso que ponho no álbum. Se alguém me fizesse mal, como é que eu reagiria? Esse é um lado. O outro é como eu deveria reagir, fazendo o que está certo."

Encontramo-lo à entrada da estação de metro de Odivelas, entre o corrupio de gente saindo da cidade para a cidade maior ali ao lado, Lisboa, ou vindo da cidade grande para continuar a lufa-lufa do trabalho. Para muitos, ainda não acabou, ainda há mais transportes para apanhar até chegar a casa. Vemos homens acelerando o passo e mulheres correndo, carregadas de sacos, para as paragens de autocarro. Vêem-se miúdos e miúdas, adolescentes vindos da escola em grupos ou passeando entre o cimento das estradas que entrecortam os quarteirões de prédios-caixote construídos nos anos 1990 e os outros, mais baixos, mais antigos, erigidos décadas antes. “Aquilo é um condomínio fechado, mas ninguém se apercebe disso”, diz ele, quando já nos sentámos numa esplanada às portas da estação, apontando para o prédio contíguo de varandas de envidraçado moderno. Tem razão, ninguém vindo de fora o suspeitaria. Ninguém imaginaria igualmente que, caminhando menos de um quilómetro na direcção oposta, chegaríamos à Azinhaga do Barruncho, bairro isolado do olhar exterior, ou melhor, esquecido do olhar exterior, onde vivia o homem que nos acompanha à mesa da esplanada quando primeiro reparámos nele, há oito anos.

Ao coração das pessoas
Allen Pires Sanhá, ou seja, Allen Halloween, relata aquilo que se mantém escondido sob a superfície. Relatos extraídos da realidade que não vemos ou que teimam em não nos deixar ver. Crónicas em forma de canção, rapadas com aquela voz grave e imponente que domina com a consciência perfeita dos crescendos dramáticos necessários para que as palavras, e o som das palavras, se imponham perante o ouvinte. Halloween é a “Bruxa”, uma das suas alcunhas, que esconjura demónios (os seus e os da sociedade que o rodeia) e que vê mais longe. Halloween é importante e isso, hoje, temo-lo por certo.

Cada álbum é um momento específico. Através deles, quase que se pode traçar-lhe a biografia. “Escrevi o Mary Witch quando morava aqui em Odivelas e passava a vida na rua. O Árvore Kriminal escrevi-o quando morava no Cais do Sodré, em Lisboa. É lógico que seja um álbum mais fácil de ouvir. Estava a toda a hora na noite, com o pessoal do Adamastor, com os camones, os ingleses e os italianos. Este [Híbrido] escrevi-o num regresso a Odivelas”, explica. “É mais maduro, mais próximo daquilo que sempre quis fazer." Desta vez, assumiu ele a masterização. Nos anteriores, entregara essa função “a pessoal do rock”. Quis que Híbrido fosse menos “estridente”, com mais “bass”, mais subgraves. Isso, a seu ver, fez uma grande diferença. “Parece que falava mais, agora parece que canto mais e que as palavras deslizam melhor."

Híbrido tem a voz de Halloween e as produções secas de Halloween. Mas, ao contrário, dos trabalhos anteriores, há nele um carácter mais detalhado. Mesmo contendo canções de raiva, como Bairro Black (com o regressado General D e o velho companheiro Buts MC), denúncia da violência policial nos bairros sociais sem rua de saída; mesmo encontrando aqui canções pesadelo como Rei da ala ou uma tempestuosa Mr Bullying, atravessa-o um tom reflexivo, melancólico, até.

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SUZANA LUZIR

Há um tom de fantasia diabólica nos órgãos samplados, há uma dor irremediável que irrompe das notas de piano, enquanto as guitarras ora silvam acentuando o ambiente tenso, ora criam nova camada introspectiva sobre a batida (o rock faz parte da equação, ou não referisse regularmente Allen Haloween o nome de Kurt Cobain). “Antigamente, e vejo isso nos sons mais antigos, parecia que não dava espaço à musicalidade. Cantava o tempo todo. Hoje tenho a preocupação de deixar espaço para a música”, afirma. Nascem então coisas como O Rei da ala, pedaço de música que é conto e filme e que nos coloca, como poucos conseguem, no coração da canção. Vale a pena a citação longa: “Alguém gritava, ninguém o ouviu/ Havia trovoada, estávamos em Abril/ Até o seu maior rival chorou, quando ele saiu/ O rei da ala tornara-se um velho louco e senil/ Dizem que viu a cabra quando estava no covil/ Dizem que foi um guarda que lhe deu Lagarctil [medicamento para tratar esquizofrenia e outras psicoses]/ Ninguém o visitava, nem a mulher que o pariu/ Todo o dia ele cantava a mesma canção/ ‘Os gangsters não vão para o céu,/ nem vão ver a face ou a glória de Deus/ O rei é Cristo eu não sou ninguém/ Abram-me a porta, eu porto-me bem’”.

Ouvimo-lo no país deprimido, sofrido, esmagado numa Europa em convulsão onde os números em folha Excel são soberanos e os cidadãos matéria descartável. Não o vejam, porém, como músico que é actor político. Esse papel não o reclama. “Eu faço a minha parte. Não é pela política que se chega lá, o que percebi quando comecei a estudar a Bíblia. É pela pessoa, pelo coração das pessoas. Podes salvar o João, podes salvar o António. Agora, salvar uma sociedade? Salvar um país? Era muito fácil fazer um som para o Cavaco Silva, que considero um dos maiores inimigos do povo. A governação dele deixa sempre as pessoas com medo e a levar porrada, desde o caso da Ponte 25 de Abril até hoje. Se eu não tivesse o conhecimento da vida que tenho hoje, tinha 300 sons a falar do Cavaco Silva. Mas eu ataco o que ele representa, não ataco a pessoa."

Aplica o mesmo raciocínio ao racismo. “Quando vês um jovem hoje, como por exemplo esses três aí [aponta para três adolescentes brancos, t-shirt caveada, fio ao pescoço, andar gingão], como podes dizer que nada mudou?”. É certo que “não há nenhuma cara negra na televisão” – “há nas telenovelas angolanas porque pagam” – e que, “se calhar as pessoas pensavam que por esta altura a Assembleia da República já estava cheia de negros”, reflecte, mas o facto é que “antes aqueles miúdos, não queriam nada com blacks e atacavam os blacks. Hoje não". "É nesse sentido", argumenta, "que a cultura pode mudar”. Para Allen Haloween, de resto, o problema da “raça” é em Portugal também uma questão de “classe”: “Também não há pobres a falar na televisão." O atraso do país passa também por aí. “Se tens numa empresa um brasileiro muito bom e não o promoves por ser brasileiro, estás a prejudicar a empresa. Não é só mau para a pessoa que sofre o acto racista, mas também para quem o comete. Um racista não tem de me pedir desculpa. Deve pedir desculpa a si próprio." Acrescenta: “Estou a ir a casa de toda gente comer e beber. Estou em Portugal a falar contigo, amanhã em Angola a falar com outras pessoas, depois de amanhã no Brasil. Um racista só tem o seu bairro e o seu café para fazer a festa. Essa é uma vantagem para nós, que somos filhos largados no mundo."

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DR

Allen Pires Sanhá, nome de guerra Allen Halloween, tem hoje 36 anos. Vive em Odivelas com a sua companheira e os três filhos. Mostra-nos o mundo, o nosso mundo, como mais ninguém é capaz de mostrar. Híbrido é uma obra-prima necessária. Obrigatória no presente. Uma dádiva para o futuro, quando quiserem ver o que fomos.