Retrato de Manel Cruz enquanto artista esquivo

Depois do Primavera Sound, Manel Cruz continua a apresentar a sua Estação de Serviço esta sexta-feira, no Festival Silêncio, em Lisboa. Até Setembro, é tempo de o ex-vocalista dos Ornatos Violeta andar na estrada.

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Em Setembro, logo se verá o que sobra desta Estação de Serviço, altura em que Manel Cruz diz querer parar para ganhar tempo e “fazer coisas novas” Paulo Pimenta

Depois dos Ornatos Violeta, Manel Cruz não corre riscos. Sendo que o risco de que se fala é o de que o sucesso de cada projecto o escravize de alguma maneira e comprometa a sua relação livre com a criação. Manel, no fundo, trata a música como uma amante a quem pede que não deixe o seu casamento.

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Depois dos Ornatos Violeta, Manel Cruz não corre riscos. Sendo que o risco de que se fala é o de que o sucesso de cada projecto o escravize de alguma maneira e comprometa a sua relação livre com a criação. Manel, no fundo, trata a música como uma amante a quem pede que não deixe o seu casamento.

“Há uma parte que me assusta um pouco na questão da exposição”, reconhece. “Quero, e sempre quis, ter reconhecimento. Tenho a minha vaidade e a minha vontade grande de ser reconhecido, e é também para isso – não só mas também – que faço música, para comunicar, para mostrar o meu trabalho. Mas a exploração da imagem não me parece inevitável. Sempre me assustou a ideia de a minha cara aparecer em todo o lado.” Charme que também possa ser, a verdade é que a relação esquiva de Manel Cruz com momentos mais mediatizados encontra quase sempre um fervoroso culto à sua espera. Na última edição do Primavera Sound, inaugurando o concerto Estação de Serviço na abertura de um dos palcos do festival, a actuação seria celebrada com tal exaltação pelo público que não escapou sequer à reportagem do influente site Pitchfork, assinada por Evan Minsker: “Cruz apresentou algumas das canções mais cativantes e imprevisíveis que ouvi durante todo o fim-de-semana.”

Só que esse é o reconhecimento de que o ex-Ornatos Violeta gosta, porque deriva da obra que leva para palco e não dos programas de televisão que frequenta. “Sempre associei a fama à solidão”, confessa ainda, “acho que nos afasta dos outros. Passa-se a ser mais um cromo do que propriamente uma pessoa.” Desde “puto”, aliás, que Manel Cruz se lembra de acreditar que se investisse a sério na música o seu trabalho acabaria por encontrar um público, sem ter de se fiar em “mega campanhas”. Argumenta, por isso, que não gosta de “ir à cara das pessoas” e compara a música a uma produção de compotas: “Podia fazer uma imagem, pôr no Facebook, pegar nas minhas economias e fazer uma grande publicidade; ou então pensar apenas que queria fazer uma boa compota. E se a compota fosse mesmo boa, as pessoas haviam de gostar, comprar e dizer aos outros para provarem.”

Seguindo o mesmo raciocínio, não espera complacência alguma de quem, por alguma razão, deixar de achar graça à sua arte: “Sei que tenho o meu lugar, mas não é cativo, porque no dia em que começar a meter nojo ninguém me vai pedir licença para deixar de gostar.”

A lógica do pousio
Por enquanto, a julgar pela reacção do Primavera Sound a este “momento de intervalo entre projectos”, esse esfriamento pelas suas canções está longe de acontecer. Num formato mais cru do que aquele levado a palco no projecto Foge Foge Bandido, apresentará no Largo de São Paulo, a convite do Festival Silêncio, um concerto semelhante ao do Primavera mas em versão alargada. Com a certeza de que entre as várias visitações do seu passado musical neste formato de voz, guitarra, banjo, percussão, melódica e baixo não haverá espaço para temas dos Ornatos Violeta. “Ainda experimentámos três ou quatro músicas, mas acabou por não entrar nenhuma porque não funcionavam”, esclarece. “E talvez estas sejam as músicas que sobreviveram ao tempo e à censura. Como os Ornatos são uma coisa mais antiga, será talvez mais complicado identificar-me.”

Estação de Serviço funciona também como uma investigação de Manel Cruz, em que temas antigos e alguns novos, são testados na sua visão daquilo que poderiam ser serviços quase mínimos em termos de arranjos. Foi-se a sensação de tralha espalhada por todos os lados, uma espécie de quarto desarrumado, em que decorriam os concertos de Foge Foge Bandido, fica um lugar em que o músico diz ainda não estar instalado: “É um sítio que estou a descobrir. Nomeadamente uma relação com as melodias que tem que ver um pouco com um espírito português das mezinhas e das lenga-lengas, uma estética que identifico não necessariamente com o fado mas com uma portugalidade qualquer. Não sei explicar muito bem, mas sinto que há aqui um caminho que me interessa explorar.”

Depois, em Setembro, logo se verá o que sobra desta Estação de Serviço, altura em que Manel Cruz diz querer parar para ganhar tempo e “fazer coisas novas”. “Não me faz confusão nenhuma desligar-me disto daqui por uns meses”, garante. Até porque se há ideia que lhe é cara é a do pousio – como não se sente um músico e entende, por isso, não ter obrigações com a criação artística a esse nível, prefere valer-se dos conceitos da agricultura. “É preciso deixar o terreno descansar, que é também a forma de a terra voltar a estar fértil, e depois então decidir o que se vai plantar.” Nesse período, em que nada acontece, a resposta é simples: “Vou comprar ao supermercado.”