O regresso da IVG ao Parlamento: novas tentativas de punição das mulheres

A proposta do “Direito a Nascer” assenta em premissas não verdadeiras.

Nesta altura, a maioria dos portugueses considerou que o Estado não tinha o direito de proibir a IVG, nem de a penalizar (em nome de uma qualquer perspectiva moral que nunca seria generalizadamente partilhada). Ora, foi isto que a direita social nunca conseguiu aceitar e, por isso, o projecto-lei discutido amanhã vem, precisamente, propor uma série de mecanismos que funcionam como penalizações das mulheres que, dentro da lei, decidam recorrer à IVG.

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Nesta altura, a maioria dos portugueses considerou que o Estado não tinha o direito de proibir a IVG, nem de a penalizar (em nome de uma qualquer perspectiva moral que nunca seria generalizadamente partilhada). Ora, foi isto que a direita social nunca conseguiu aceitar e, por isso, o projecto-lei discutido amanhã vem, precisamente, propor uma série de mecanismos que funcionam como penalizações das mulheres que, dentro da lei, decidam recorrer à IVG.

Os promotores desta iniciativa legislativa procuram justificar-se e uma das razões para a sua iniciativa é o facto, dizem-nos, de a despenalização ter levado “à liberalização e promoção do aborto”. Nada podia ser mais falso. A IVG nunca foi liberalizada, mas apenas despenalizada até às dez semanas (além de se manterem os casos já anteriormente previstos na lei), garantindo-se que a mulher tem acesso a toda a informação médica e sobre as condições de apoio do Estado caso decida prosseguir com a gravidez, que terá um período de reflexão de três dias após a primeira consulta, que será posteriormente encaminhada para consulta de planeamento familiar.

Além disso, sabe-se que os números de casos de aborto têm vindo a diminuir e não a aumentar, ao contrário do que sugere a proposta. O estudo da Direcção Geral de Saúde, apresentado na semana passada, mostrou que se realizaram 16.589 abortos em 2014, menos 1.692 do que no ano anterior, o que corresponde a uma quebra de 9,3%, seguindo uma tendência que se verifica nos últimos anos. A taxa portuguesa de repetição de aborto é das menores do mundo e está abaixo da média europeia, sendo impossível dizer-se, como dizem os promotores desta iniciativa, que o aborto seja encarado como método contraceptivo.

A proposta do “Direito a Nascer” assenta, pois, em premissas não verdadeiras. E, lendo o seu texto, é fácil perceber que as mudanças legislativas apresentadas têm o intuito de criar novas formas de punição das mulheres. Desde logo, quer impor-se que a mulher que decida realizar uma IVG seja obrigada a ver e a assinar a ecografia que lhe é feita. Esta prática em nada contribui para a informação e esclarecimento da mulher e não há qualquer razão médica para que uma mulher, que optou – dentro da lei! – por realizar uma IVG, seja sujeita – pelo Estado que autoriza essa IVG! – a visualizar a ecografia, se isso for contra a sua vontade. A explicação para esta ideia é simples: continuar a penalizar as mulheres – se já não criminalmente, agora emocionalmente.

Um outro conjunto de propostas emblemáticas desta iniciativa do “Direito a Nascer” tem que ver com o facto de se procurar pôr fim ao direito a baixa médica, à justificação de faltas, ou à comparticipação de medicação, entre outras, se estas forem necessárias por razões de saúde da mulher. Todas estas medidas – que roçam a desumanidade – consistem, no fundo, em novas formas de punição das mulheres que optam por abortar nos termos da lei.

Esta iniciativa cidadã também defende o fim da isenção de taxas moderadoras na realização da IVG – uma ideia a que PSD e CDS parecem ter aderido, uma vez que vai igualmente discutir-se um projecto-lei, da sua autoria que visa o mesmo fim. Instituir o pagamento desta taxa irá dificultar o acesso a este cuidado médico e até de introduzir desigualdades nesse acesso, pois mulheres de menores rendimentos (ainda que não isentas do pagamento) ficarão necessariamente prejudicadas relativamente àquelas que dispõem de rendimentos maiores. Mesmo o argumento sobre a eventual “injustiça” de a IVG ser “gratuita”, enquanto outros cuidados médicos são alvo de taxa moderadora no SNS, talvez ele nos devesse levar antes a discutir se estes últimos não deveriam ser, também eles, gratuitos, em vez de procurarmos introduzir um co-pagamento na IVG. De qualquer modo, a justificação para a inclusão de taxas moderadoras na IVG não é financeira, sobretudo porque se sabe que uma grande parte das mulheres que a ela recorre estaria isenta do pagamento (por situação de desemprego, insuficiência económica, por serem estudantes, menores de idade). A justificação (encapotada) é, mais uma vez, moral.

A iniciativa legislativa contém outras propostas que vão no mesmo sentido: introduzir penalizações contra as mulheres que recorram à IVG. Consiste, por isso, num expediente para contrariar o espírito da lei que os portugueses democraticamente determinaram em referendo. E devemos, por isso, esperar que PSD e CDS se juntem aos partidos de esquerda na sua rejeição.

Politóloga, IPP TJ-CS e UBI