Benjamin Clementine: "Encontrei uma forma de ser feliz outra vez"

Zangou-se com o mundo, dormiu nas ruas, cantou no metro. Agora expõe nas salas de espectáculo a sua singular expressividade vocal - patente no álbum At Least For Now, que agora tem distribuição em Portugal. Em Brighton fomos encontrar um cantor notável que em Julho estará em Lisboa.

Foto
Em palco está alguém que gere o silêncio como ninguém, sem que se perceba se o faz de forma teatral ou espontânea gwendal le flem

Depois volta a fazer-se silêncio, entrega-se ao piano, “como se fossem um só”, dir-nos-á depois, o som sai em cascata, notas perseguindo-se, acabando por soltar aquela incrível e elástica voz de barítono, cantando palavras que parecem de autoanálise. Ao longo dos meses a imprensa foi-o comparando a Nina Simone, Antony, Edith Piaf ou Scott Walker, mas o seu carisma sobrevive às prateleiras onde o tentam meter.

Ao longo de todo o concerto, no pequeno mas monumental Teatro Royal de Brighton, um edifício de século XIX, irá ser assim. Em palco está alguém que gere o silêncios como ninguém, sem que se perceba se o faz de forma teatral ou espontânea. No final das canções ninguém parece saber como reagir. Ele fala em voz baixa, às vezes com humor, outras afectadamente, parecendo Tom Waits como se falasse debaixo de água, confundindo as pessoas que enchem o espaço, magnetizadas pela aura. 

“Uau! Que lugar!”, exclama pausadamente, quando entra em cena, olhando demoradamente para os balcões barrocos do teatro. Em contraste, a sua música e o seu posicionamento é minimalista, contido. Quando fala quase não se ouve. Mas quando canta transforma-se. A sua voz tanto pode ser vulnerável, como revelar grande potência, como se fizesse ricochete nas paredes.

É difícil imaginar que este cantor e pianista de porte aristocrático vagueava pelas ruas de Paris há três anos como um sem-abrigo. O ano passado, já depois de um editor o ter visto a cantar no metro e de o ter convidado a gravar, lançou dois EPs (Cornerstone Glorious You), ao mesmo tempo que as suas canções se tornavam virais no YouTube e foi convidado para tocar no programa de TV britânico Later With Jools Holland, sendo elogiado por Paul McCartney. Já este ano lançou o álbum At Least For Now pela Universal, a islandesa Björk programou-o para um festival e, nos Victoire de la Musique, os galardões da indústria francesa, foi a revelação do ano.

No início do ano quando aqui escrevemos sobre ele (Ípsilon de 6 de Fevereiro) ainda não era totalmente perceptível como agora é que o resto do mundo o iria receber, até porque o álbum de estreia apenas havia sido editado em França. Agora, poucos meses depois, é nítido que é um dos acontecimentos do ano musical na Europa. O disco tem agora  distribuição oficial em Portugal e existe um espectáculo marcado para o Super Bock Super Rock em Lisboa, a 17 de Julho.

Continuo a ser um vagabundo
O álbum é excelente, uma voz majestosa sublimando letras que parecem autobiográficas e uma música intemporal que tem qualquer coisa de clássica, jazz, soul, blues ou canção ligeira francesa. Ao vivo é ainda mais impressionante.
No entanto quando falamos com ele parece alheado da atenção que está a despertar. “Não tinha nenhuma expectativa em particular com este álbum porque era o primeiro. Apenas queria gravar as minhas canções e dá-las a conhecer às pessoas”, reflecte. “Tudo o que aconteceu depois acaba por ser bónus. Fico satisfeito por me convidarem para tocar em grandes festivais. Emociono-me quando alguém vem ter comigo e me agradece. E claro que é bom poder tocar em Portugal ou Alemanha, mas sinto que me limitei a fazer o que gosto. O resto foi um acréscimo.”

O espectáculo de Brighton, a uma hora de comboio de Londres, faz parte da sua primeira digressão europeia. Nos últimos meses tem viajado imenso, entre estradas, hotéis e cidades. Às tantas, de forma surpreendente, a partir dessa situação nova na sua vida, acaba a brincar com a sua anterior condição de sem-abrigo. “Agora acabo por também não ter casa fixa e todas as noites durmo numa cama diferente, sempre de um lado para o outro.”

Mas apesar de tudo é diferente saber que, ao final do dia, terá certamente cama onde pernoitar. “É verdade”, concorda, “embora hoje quando as pessoas compram casa raramente sejam donas delas, passando a vida a pagá-las. Nesse sentido continuo a ser um vagabundo que não passa mais de três dias no mesmo local.”

Fala-se com ele e percebe-se que não é de muitas palavras, embora por vezes pareça filosofar, como se aceitasse o desafio de pensar sobre determinado assunto pela primeira vez. Tem qualquer coisa de misterioso, como quando o vemos em palco. “No momento em que paro de cantar volto à minha timidez”, afirma.

Alto, esguio, descalço, senta-se ao piano na ponta de um longo banco, casaco negro comprido e apenas um foco de luz a incidir sobre a cabeleira afro. E a partir daí toca, de forma intuitiva – é autodidacta –, com uma descontracção quase insolente. Algumas vezes toca apenas com uma mão, olhando o público como se estivesse a recitar, outras vezes fecha os olhos e transcende-se, com a voz puxada até ao limite, uivando desespero ou raiva, para tudo desaguar numa intensidade elegante.  No final ouve-se uma trovoada de aplausos e escuta-se um simples e ruminante “obrigado, muito obrigado.”

“Quando estou no palco imagino que estou a falar com os meus melhores amigo”, diz-nos. “É isso que sinto. Em palco sinto-me como se não visse um amigo há muito tempo. Gosto de sentir que estou a tocar para ele. Parece produto da minha imaginação, mas é muito real. Sinto-me confortável em dar aos meus amigos aquilo que eles desejam ouvir e esforço-me por não os desapontar.”

A maior parte do tempo está só em palco, sendo apenas acompanhado em quatro canções pela violoncelista Barbara Le Liepvre, embora já se tenha apresentado com baterista e baixista.
É evidentemente um concerto intimista, com momentos de introspecção até à expressividade emocional mais arrebatada. É difícil imaginar como funcionará esta música no contexto disperso de um festival, mas ele não revela preocupações: “Não quero que a minha música seja entendida como sendo apenas para pessoas mais velhas, daí interessar-me por expô-la também a um público mais jovem e para isso acontecer os festivais são importantes e não tenho quaisquer problemas em apresentar-me seja onde for.”

Experiência em tocar nos mais diversos locais não lhe falta, tendo-o feito na rua, nos corredores do metro, em bares barulhentos, em festas de casamentos ou em hotéis de má fama. Ri-se pela lembrança. “Sim, é verdade, isso deu-me experiência, acima de tudo na colocação da voz e na forma como me adapto às circunstâncias com as quais me vou deparando.”

Nasceu em Edmonton, subúrbios do norte de Londres, filho de pais ganeses. É o mais novo de cinco irmãos, tendo crescido na infância e adolescência entre a casa da avó e dos pais, depois de estes se terem separado. A acreditar no que se ouve em algumas canções, não foram tempos muito felizes. Em Cornerstone canta sobre essa sensação de se sentir sozinho em casa e no tema de abertura do álbum, Winston Churchill’s boy, o famoso discurso de Churchill é recriado para poder cantar: “never in the field of human affection / Had so much been given for so few attention.”

Da escola secundária também não guarda grandes recordações. Ele era aquele que não se integrava, que estava à margem, e na relação com os colegas esse sentimento era reforçado. Não por causa da cor da pele. Mas por, segundo ele, não participar nas dinâmicas sociais dos restantes rapazes, sendo gozado por eles.

Ele era o “efeminado”, o rapaz sensível que as raparigas gostavam e que os rapazes rotulavam de gay, mesmo não o sendo. Hoje desvaloriza o assunto – “depende do contexto onde estamos inseridos”, limita-se a dizer – mas na altura não foi fácil.

A minha música também é uma óptima história
Aos 17 anos saiu de casa, sem que sejam explícitas as razões do confronto com a família. Os pais queriam que ele fosse advogado. Ele não. O único consolo pareciam ser as bibliotecas (a propósito dessa paixão vale a pena ver um belo vídeo filmado na vazia biblioteca Sainte Geneviève de Paris), onde se refugiava, descobrindo aí a poesia de William Blake ou T.S. Eliot, as narrativas de Hemingway ou a filosofia de Kant. Depois vagueou pelas ruas de Camden Town, Londres, e um dia, em 2008, sem que se saiba bem porquê, resolveu tentar a sorte em Paris.

Não tinha contactos em França. Não dominava a língua. E acabou a dormir nas ruas, em hotéis precários, em cozinhas de restaurantes onde trabalhou ou em casas de namoradas que mal conheceu. A música foi estando presente, mas apenas a espaços.

Em casa dos pais, aos 10 anos, chegou a tocar num velho teclado do irmão mais velho, mas nada de mais. Nunca teve aprendizagem musical embora aos 15 anos, depois de ouvir na rádio as peças melancólicas para piano de Erik Satie e de ver na TV Antony, tivesse imaginado que poderia fazer o mesmo. E assim aconteceu. Em Paris começou a cantar no metro (existem vídeos de telemóvel no YouTube) ao mesmo tempo que foi tomando contacto com a realidade musical gaulesa, de Ferré a Brel, e acabou descoberto pelo editor e manager Matthieu Gazier.

É uma história com pontos em branco e ele sabe-o, preferindo não os desvendar, confessando-se saturado do interesse generalizado à volta da sua biografia, receando que essa atenção se sobreponha à música. “Percebo que as pessoas gostem que lhes seja contada uma boa história. Quer dizer, não me posso queixar. Encontrei uma forma de ser feliz outra vez, e foi-me dada uma oportunidade de ter uma outra família com a música.”

E sem que o interrompamos, pela primeira vez, alonga-se no comentário: “A minha vida influenciou a minha música, mas acredito no meu álbum, nas minhas composições, nas melodias. Não quero que as pessoas tenham pena de mim, mas sim que oiçam a minha música. Quando muito, ouvindo a música, se tiverem pena que seja delas próprias”, ri-se, meio a brincar, meio a sério, acrescentando esperar que consiga estimular “sentimentos de felicidade ou esperança, isso é que é importante.” E continua: “a minha música não é apenas sobre mim, é sobre pessoas à procura de respostas, é sobre humanidade. Sentirmo-nos sós pode ser muito duro e eu estive aí nesse lugar, onde não havia pessoas à minha volta, apenas livros e música, mas ao mesmo tempo tive sorte porque consegui fazer qualquer coisa de criativo com isso. Não culpo ninguém. Fiz as minhas escolhas. O passado já lá vai. Apenas quero que as pessoas falem do meu trabalho, porque a minha música também é uma óptima história.”

Talvez num segundo álbum o seu desejo se cumpra. Para já é difícil. As canções estão coladas à sua pele. Em Adios, por exemplo, é quase impossível não vislumbrar um desejo de catarse quando canta “Adios to the little child in me / Who kept on blaming everyone else / Instead facing defeat / After all, why should i regret / If it wasn’t for the mistakes / I made yesterday / Where will i be by now / The decision is mine / So let the lesson be mine.”

“Em Londres, aos 17 anos, limitei-me a sobreviver, mas a minha vida foi marcada por muitas circunstâncias e por muitas inspirações e não apenas por este ou aquele aspecto em específico”, afirma, argumentando que provavelmente as suas letras geraram tantas interpretações porque hoje já ninguém lhes parece dar grande atenção. “Em França, curiosamente, acho que as pessoas ligam às letras das canções e à forma como são interpretadas, mas aqui em Inglaterra não sinto isso. Ligo o rádio e só oiço música a metro ou então do passado. Não faz sentido.”

É crítico da música actual. Respeita James Blake, por exemplo, mas não vislumbra na maior parte do que vê e ouve qualquer sentido de autenticidade, sendo muito duro com os concursos que tentam fabricar celebridades. “Não consigo entender esse tipo de iniciativas que em vez de incentivarem a individualidade se limitam a propor a medida padrão”, resume.

Quando lhe perguntamos como é que descreveria o seu dia-a-dia quando, finalmente, está em casa, sem vagabundear, irrompe em risos. “Acordo e de imediato vou direito ao piano”, afirma, parecendo num primeiro momento que está a ironizar, para de seguida instalar a dúvida, adoptando um tom sério. “Sim, faço isso, dia após dia, é a primeira coisa que faço quando me levanto e a maior parte das vezes até me esqueço de lavar os dentes.”

Nunca saberemos se é verdade. É enigmático. Mas não custa acreditar que poderá ser mesmo assim, afinal é ele que diz ter uma relação “animalesca” com o piano. É assim que justifica o ir descalço para palco, por exemplo. “Gosto de sentir os pedais fisicamente, visceralmente, como se piano e eu fôssemos um só”, justifica, ao mesmo tempo que revela que gosta de pensar no palco como se fosse a extensão da intimidade do lar.

Faz sentido. Quando está em cena, participa-se no turbilhão de emoções transmitidas, mas também há momentos em que nos sentimos intrusos, como se estivéssemos a mais ou então ele se tivesse esquecido da nossa presença. Em Edmonton, canção que não está presente no álbum, leva-nos em viagem de reconhecimento ao local onde cresceu, as notas de piano saem secas e despojadas e a voz solta-se, adoptando texturas do jazz, fazendo do blues o seu quarto, ou suspirando de forma profundamente soul.

A voz vai mudando de registo, as palavras evocativas saem precisas, reflectindo muitas vidas através do espelho. As canções não têm um estrutura rígida, mas a ligação com a audiência é imediata, vislumbrando-se os longos dedos, os gestos eloquentes e a afectividade interpretativa. Às tantas, quando a violinista faz um gesto de retirada, vira-se para ela, com um sorriso, e pergunta-lhe, “mas, onde vais tu?”, como se não quisesse ficar sozinho. Ela ri-se, rimo-nos todos, e ela fica ali, a vê-lo, como nós, incorporando o absurdo e a inspiração da vida.

No final, uma enorme ovação, depois outra vez a quietude respeitosa e para a interromper uma voz da plateia faz-se ouvir, parecendo fazer eco da cena vivida minutos antes: “Benjamin não estás só, nós estamos contigo!”, ouve-se, enquanto ele sorri.

Talvez seja isso. Benjamin, já não está só, “alone in a box of stone”, como ele canta em Cornerstone, adorado por todas aquelas pessoas que sorvem cada gesto, cada palavra, cada instante da sua performance. Há alturas em que parece que um qualquer espectador se vai levantar da cadeira, quebrando o fosso entre palco e plateia que inventámos para separar artistas e amadores, e abraça-lo, dessa forma participando na ilusão que o conforta, quando afinal nos confortamos a nós através dele.

Talvez a sua biografia ajude a que da plateia se lancem juras de amor, como quem quer protegê-lo. Mas para lá de qualquer processo de identificação existe aquela imensa voz. E isso basta.
 

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Depois volta a fazer-se silêncio, entrega-se ao piano, “como se fossem um só”, dir-nos-á depois, o som sai em cascata, notas perseguindo-se, acabando por soltar aquela incrível e elástica voz de barítono, cantando palavras que parecem de autoanálise. Ao longo dos meses a imprensa foi-o comparando a Nina Simone, Antony, Edith Piaf ou Scott Walker, mas o seu carisma sobrevive às prateleiras onde o tentam meter.

Ao longo de todo o concerto, no pequeno mas monumental Teatro Royal de Brighton, um edifício de século XIX, irá ser assim. Em palco está alguém que gere o silêncios como ninguém, sem que se perceba se o faz de forma teatral ou espontânea. No final das canções ninguém parece saber como reagir. Ele fala em voz baixa, às vezes com humor, outras afectadamente, parecendo Tom Waits como se falasse debaixo de água, confundindo as pessoas que enchem o espaço, magnetizadas pela aura. 

“Uau! Que lugar!”, exclama pausadamente, quando entra em cena, olhando demoradamente para os balcões barrocos do teatro. Em contraste, a sua música e o seu posicionamento é minimalista, contido. Quando fala quase não se ouve. Mas quando canta transforma-se. A sua voz tanto pode ser vulnerável, como revelar grande potência, como se fizesse ricochete nas paredes.

É difícil imaginar que este cantor e pianista de porte aristocrático vagueava pelas ruas de Paris há três anos como um sem-abrigo. O ano passado, já depois de um editor o ter visto a cantar no metro e de o ter convidado a gravar, lançou dois EPs (Cornerstone Glorious You), ao mesmo tempo que as suas canções se tornavam virais no YouTube e foi convidado para tocar no programa de TV britânico Later With Jools Holland, sendo elogiado por Paul McCartney. Já este ano lançou o álbum At Least For Now pela Universal, a islandesa Björk programou-o para um festival e, nos Victoire de la Musique, os galardões da indústria francesa, foi a revelação do ano.

No início do ano quando aqui escrevemos sobre ele (Ípsilon de 6 de Fevereiro) ainda não era totalmente perceptível como agora é que o resto do mundo o iria receber, até porque o álbum de estreia apenas havia sido editado em França. Agora, poucos meses depois, é nítido que é um dos acontecimentos do ano musical na Europa. O disco tem agora  distribuição oficial em Portugal e existe um espectáculo marcado para o Super Bock Super Rock em Lisboa, a 17 de Julho.

Continuo a ser um vagabundo
O álbum é excelente, uma voz majestosa sublimando letras que parecem autobiográficas e uma música intemporal que tem qualquer coisa de clássica, jazz, soul, blues ou canção ligeira francesa. Ao vivo é ainda mais impressionante.
No entanto quando falamos com ele parece alheado da atenção que está a despertar. “Não tinha nenhuma expectativa em particular com este álbum porque era o primeiro. Apenas queria gravar as minhas canções e dá-las a conhecer às pessoas”, reflecte. “Tudo o que aconteceu depois acaba por ser bónus. Fico satisfeito por me convidarem para tocar em grandes festivais. Emociono-me quando alguém vem ter comigo e me agradece. E claro que é bom poder tocar em Portugal ou Alemanha, mas sinto que me limitei a fazer o que gosto. O resto foi um acréscimo.”

O espectáculo de Brighton, a uma hora de comboio de Londres, faz parte da sua primeira digressão europeia. Nos últimos meses tem viajado imenso, entre estradas, hotéis e cidades. Às tantas, de forma surpreendente, a partir dessa situação nova na sua vida, acaba a brincar com a sua anterior condição de sem-abrigo. “Agora acabo por também não ter casa fixa e todas as noites durmo numa cama diferente, sempre de um lado para o outro.”

Mas apesar de tudo é diferente saber que, ao final do dia, terá certamente cama onde pernoitar. “É verdade”, concorda, “embora hoje quando as pessoas compram casa raramente sejam donas delas, passando a vida a pagá-las. Nesse sentido continuo a ser um vagabundo que não passa mais de três dias no mesmo local.”

Fala-se com ele e percebe-se que não é de muitas palavras, embora por vezes pareça filosofar, como se aceitasse o desafio de pensar sobre determinado assunto pela primeira vez. Tem qualquer coisa de misterioso, como quando o vemos em palco. “No momento em que paro de cantar volto à minha timidez”, afirma.

Alto, esguio, descalço, senta-se ao piano na ponta de um longo banco, casaco negro comprido e apenas um foco de luz a incidir sobre a cabeleira afro. E a partir daí toca, de forma intuitiva – é autodidacta –, com uma descontracção quase insolente. Algumas vezes toca apenas com uma mão, olhando o público como se estivesse a recitar, outras vezes fecha os olhos e transcende-se, com a voz puxada até ao limite, uivando desespero ou raiva, para tudo desaguar numa intensidade elegante.  No final ouve-se uma trovoada de aplausos e escuta-se um simples e ruminante “obrigado, muito obrigado.”

“Quando estou no palco imagino que estou a falar com os meus melhores amigo”, diz-nos. “É isso que sinto. Em palco sinto-me como se não visse um amigo há muito tempo. Gosto de sentir que estou a tocar para ele. Parece produto da minha imaginação, mas é muito real. Sinto-me confortável em dar aos meus amigos aquilo que eles desejam ouvir e esforço-me por não os desapontar.”

A maior parte do tempo está só em palco, sendo apenas acompanhado em quatro canções pela violoncelista Barbara Le Liepvre, embora já se tenha apresentado com baterista e baixista.
É evidentemente um concerto intimista, com momentos de introspecção até à expressividade emocional mais arrebatada. É difícil imaginar como funcionará esta música no contexto disperso de um festival, mas ele não revela preocupações: “Não quero que a minha música seja entendida como sendo apenas para pessoas mais velhas, daí interessar-me por expô-la também a um público mais jovem e para isso acontecer os festivais são importantes e não tenho quaisquer problemas em apresentar-me seja onde for.”

Experiência em tocar nos mais diversos locais não lhe falta, tendo-o feito na rua, nos corredores do metro, em bares barulhentos, em festas de casamentos ou em hotéis de má fama. Ri-se pela lembrança. “Sim, é verdade, isso deu-me experiência, acima de tudo na colocação da voz e na forma como me adapto às circunstâncias com as quais me vou deparando.”

Nasceu em Edmonton, subúrbios do norte de Londres, filho de pais ganeses. É o mais novo de cinco irmãos, tendo crescido na infância e adolescência entre a casa da avó e dos pais, depois de estes se terem separado. A acreditar no que se ouve em algumas canções, não foram tempos muito felizes. Em Cornerstone canta sobre essa sensação de se sentir sozinho em casa e no tema de abertura do álbum, Winston Churchill’s boy, o famoso discurso de Churchill é recriado para poder cantar: “never in the field of human affection / Had so much been given for so few attention.”

Da escola secundária também não guarda grandes recordações. Ele era aquele que não se integrava, que estava à margem, e na relação com os colegas esse sentimento era reforçado. Não por causa da cor da pele. Mas por, segundo ele, não participar nas dinâmicas sociais dos restantes rapazes, sendo gozado por eles.

Ele era o “efeminado”, o rapaz sensível que as raparigas gostavam e que os rapazes rotulavam de gay, mesmo não o sendo. Hoje desvaloriza o assunto – “depende do contexto onde estamos inseridos”, limita-se a dizer – mas na altura não foi fácil.

A minha música também é uma óptima história
Aos 17 anos saiu de casa, sem que sejam explícitas as razões do confronto com a família. Os pais queriam que ele fosse advogado. Ele não. O único consolo pareciam ser as bibliotecas (a propósito dessa paixão vale a pena ver um belo vídeo filmado na vazia biblioteca Sainte Geneviève de Paris), onde se refugiava, descobrindo aí a poesia de William Blake ou T.S. Eliot, as narrativas de Hemingway ou a filosofia de Kant. Depois vagueou pelas ruas de Camden Town, Londres, e um dia, em 2008, sem que se saiba bem porquê, resolveu tentar a sorte em Paris.

Não tinha contactos em França. Não dominava a língua. E acabou a dormir nas ruas, em hotéis precários, em cozinhas de restaurantes onde trabalhou ou em casas de namoradas que mal conheceu. A música foi estando presente, mas apenas a espaços.

Em casa dos pais, aos 10 anos, chegou a tocar num velho teclado do irmão mais velho, mas nada de mais. Nunca teve aprendizagem musical embora aos 15 anos, depois de ouvir na rádio as peças melancólicas para piano de Erik Satie e de ver na TV Antony, tivesse imaginado que poderia fazer o mesmo. E assim aconteceu. Em Paris começou a cantar no metro (existem vídeos de telemóvel no YouTube) ao mesmo tempo que foi tomando contacto com a realidade musical gaulesa, de Ferré a Brel, e acabou descoberto pelo editor e manager Matthieu Gazier.

É uma história com pontos em branco e ele sabe-o, preferindo não os desvendar, confessando-se saturado do interesse generalizado à volta da sua biografia, receando que essa atenção se sobreponha à música. “Percebo que as pessoas gostem que lhes seja contada uma boa história. Quer dizer, não me posso queixar. Encontrei uma forma de ser feliz outra vez, e foi-me dada uma oportunidade de ter uma outra família com a música.”

E sem que o interrompamos, pela primeira vez, alonga-se no comentário: “A minha vida influenciou a minha música, mas acredito no meu álbum, nas minhas composições, nas melodias. Não quero que as pessoas tenham pena de mim, mas sim que oiçam a minha música. Quando muito, ouvindo a música, se tiverem pena que seja delas próprias”, ri-se, meio a brincar, meio a sério, acrescentando esperar que consiga estimular “sentimentos de felicidade ou esperança, isso é que é importante.” E continua: “a minha música não é apenas sobre mim, é sobre pessoas à procura de respostas, é sobre humanidade. Sentirmo-nos sós pode ser muito duro e eu estive aí nesse lugar, onde não havia pessoas à minha volta, apenas livros e música, mas ao mesmo tempo tive sorte porque consegui fazer qualquer coisa de criativo com isso. Não culpo ninguém. Fiz as minhas escolhas. O passado já lá vai. Apenas quero que as pessoas falem do meu trabalho, porque a minha música também é uma óptima história.”

Talvez num segundo álbum o seu desejo se cumpra. Para já é difícil. As canções estão coladas à sua pele. Em Adios, por exemplo, é quase impossível não vislumbrar um desejo de catarse quando canta “Adios to the little child in me / Who kept on blaming everyone else / Instead facing defeat / After all, why should i regret / If it wasn’t for the mistakes / I made yesterday / Where will i be by now / The decision is mine / So let the lesson be mine.”

“Em Londres, aos 17 anos, limitei-me a sobreviver, mas a minha vida foi marcada por muitas circunstâncias e por muitas inspirações e não apenas por este ou aquele aspecto em específico”, afirma, argumentando que provavelmente as suas letras geraram tantas interpretações porque hoje já ninguém lhes parece dar grande atenção. “Em França, curiosamente, acho que as pessoas ligam às letras das canções e à forma como são interpretadas, mas aqui em Inglaterra não sinto isso. Ligo o rádio e só oiço música a metro ou então do passado. Não faz sentido.”

É crítico da música actual. Respeita James Blake, por exemplo, mas não vislumbra na maior parte do que vê e ouve qualquer sentido de autenticidade, sendo muito duro com os concursos que tentam fabricar celebridades. “Não consigo entender esse tipo de iniciativas que em vez de incentivarem a individualidade se limitam a propor a medida padrão”, resume.

Quando lhe perguntamos como é que descreveria o seu dia-a-dia quando, finalmente, está em casa, sem vagabundear, irrompe em risos. “Acordo e de imediato vou direito ao piano”, afirma, parecendo num primeiro momento que está a ironizar, para de seguida instalar a dúvida, adoptando um tom sério. “Sim, faço isso, dia após dia, é a primeira coisa que faço quando me levanto e a maior parte das vezes até me esqueço de lavar os dentes.”

Nunca saberemos se é verdade. É enigmático. Mas não custa acreditar que poderá ser mesmo assim, afinal é ele que diz ter uma relação “animalesca” com o piano. É assim que justifica o ir descalço para palco, por exemplo. “Gosto de sentir os pedais fisicamente, visceralmente, como se piano e eu fôssemos um só”, justifica, ao mesmo tempo que revela que gosta de pensar no palco como se fosse a extensão da intimidade do lar.

Faz sentido. Quando está em cena, participa-se no turbilhão de emoções transmitidas, mas também há momentos em que nos sentimos intrusos, como se estivéssemos a mais ou então ele se tivesse esquecido da nossa presença. Em Edmonton, canção que não está presente no álbum, leva-nos em viagem de reconhecimento ao local onde cresceu, as notas de piano saem secas e despojadas e a voz solta-se, adoptando texturas do jazz, fazendo do blues o seu quarto, ou suspirando de forma profundamente soul.

A voz vai mudando de registo, as palavras evocativas saem precisas, reflectindo muitas vidas através do espelho. As canções não têm um estrutura rígida, mas a ligação com a audiência é imediata, vislumbrando-se os longos dedos, os gestos eloquentes e a afectividade interpretativa. Às tantas, quando a violinista faz um gesto de retirada, vira-se para ela, com um sorriso, e pergunta-lhe, “mas, onde vais tu?”, como se não quisesse ficar sozinho. Ela ri-se, rimo-nos todos, e ela fica ali, a vê-lo, como nós, incorporando o absurdo e a inspiração da vida.

No final, uma enorme ovação, depois outra vez a quietude respeitosa e para a interromper uma voz da plateia faz-se ouvir, parecendo fazer eco da cena vivida minutos antes: “Benjamin não estás só, nós estamos contigo!”, ouve-se, enquanto ele sorri.

Talvez seja isso. Benjamin, já não está só, “alone in a box of stone”, como ele canta em Cornerstone, adorado por todas aquelas pessoas que sorvem cada gesto, cada palavra, cada instante da sua performance. Há alturas em que parece que um qualquer espectador se vai levantar da cadeira, quebrando o fosso entre palco e plateia que inventámos para separar artistas e amadores, e abraça-lo, dessa forma participando na ilusão que o conforta, quando afinal nos confortamos a nós através dele.

Talvez a sua biografia ajude a que da plateia se lancem juras de amor, como quem quer protegê-lo. Mas para lá de qualquer processo de identificação existe aquela imensa voz. E isso basta.
 

Foto
Nasceu em Edmonton, subúrbios do norte de Londres, filho de pais ganeses. É o mais novo de cinco irmãos, tendo crescido na infância e adolescência entre a casa da avó e dos pais, depois de estes se terem separado RICHARD DUMAS
Foto
DR
Foto
Alto, esguio, descalço, senta-se ao piano na ponta de um longo banco, casaco negro comprido e apenas um foco de luz a incidir sobre a cabeleira afro. E a partir daí toca, de forma intuitiva – é autodidacta –, com uma descontracção quase insolente cHRISTIAN pÉNIM
Foto
DR