Coberturas das campanhas e cartelização do "mercado político"

A cobertura das campanhas eleitorais nunca devia ser reformada em cima do ato eleitoral, muito menos a reboque dos interesses dos grandes conglomerados mediáticos.

Feita esta advertência, há que reconhecer que há alguns conceitos que, mutatis mutandis, são extensíveis, com utilidade heurística, da esfera do mercado para o universo da política democrática. Assim, neste artigo iremos aplicar alguns conceitos importados da esfera económica para enquadrar a discussão em curso sobre as limitações que os grandes conglomerados mediáticos querem impor na cobertura das campanhas eleitorais.

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Feita esta advertência, há que reconhecer que há alguns conceitos que, mutatis mutandis, são extensíveis, com utilidade heurística, da esfera do mercado para o universo da política democrática. Assim, neste artigo iremos aplicar alguns conceitos importados da esfera económica para enquadrar a discussão em curso sobre as limitações que os grandes conglomerados mediáticos querem impor na cobertura das campanhas eleitorais.

Para as democracias liberais e representativas do Ocidente, os princípios da livre competição pelo voto e da igualdade de oportunidades dos vários competidores políticos (partidos, candidatos) nessa competição são consubstanciais da própria ideia de democracia, não são anacronismos. Mais, esta ideia vale mesmo para as visões minimalistas e meramente procedimentais da democracia. Claro que há diferentes modelos de democracia: as regras do jogo nas "democracias maioritárias" favorecem os grandes competidores, em nome de valores como a governabilidade e a clareza da responsabilização, enquanto nas "democracias consensuais" favorecem mais a partilha do poder e o tratamento equitativo dos vários competidores, em prol da igualização da influência política, da inclusão e da maximização da participação. É sabido que o nosso modelo constitucional está mais próximo desta segunda solução. 

Na esfera económica, os princípios da não limitação da competição e do tratamento equitativo dos vários concorrentes estão geralmente subsumidos no "direito da concorrência", ou seja, no "conjunto de disposições legislativas e regulamentares que visam garantir o respeito do princípio da liberdade do comércio e da indústria". Neste domínio, ganham especial relevo as medidas legislativas para impedir as práticas anticoncorrenciais: os cartéis, o abuso de posição dominante, o controlo das concentrações e das ajudas estatais. Diz-nos ainda a Wikipédia que os "cartéis normalmente ocorrem em mercados oligopolísticos, nos quais existe um pequeno número de firmas, e normalmente envolve produtos homogéneos". Na política como na economia, e qualquer que seja o modelo democrático, os princípios da livre concorrência, do tratamento equitativo dos vários competidores (aqui mais nas democracias consensuais do que nas maioritárias) e da não distorção da competição (por práticas de cartelização, por abuso de posição dominante, etc.) são consubstanciais do livre funcionamento do "mercado político". Tal não se deve apenas à necessidade de dar corpo a uma ideia central da democracia, a igualdade política, resulta também do facto de que para haver escolhas é preciso que haja diversidade de opções (uma pluralidade de fontes de informação, de concorrentes e de propostas políticas): a diferenciação nas propostas é um sine qua non para haver escolhas, e haverá tanto mais possibilidades de escolha quanto menos as propostas políticas forem homogéneas.

Quer nos princípios constitucionais (CRP 2005) do "direito eleitoral" (art. 113), da "liberdade de imprensa" e do "direito à informação", quer na legislação ordinária sobre a cobertura de campanhas eleitorais, podemos ver a materialização dos princípios basilares do "mercado político" livre, ou seja, da autonomia dos jornalistas e da proibição da censura, mas também dos direitos dos cidadãos (e dos candidatos) a fontes alternativas de informação, à livre concorrência, ao tratamento equitativo dos vários competidores e à não distorção da competição. Assim, além de proteger a liberdade de imprensa (art. 38), a Constituição protege também o "direito (dos cidadãos) à informação" e (o direito de cidadãos e candidatos) obriga à "possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião" nos meios de comunicação social (art. 39). E quer a CRP (art. 113), quer a lei eleitoral (14/1979) prescrevem a "igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas": "Os candidatos e os partidos políticos ou coligações que os propõem têm direito a igual tratamento por parte das entidades públicas e privadas, a fim de efetuarem, livremente e nas melhores condições, a sua campanha eleitoral." E depois, como compete a uma qualquer lei que se pretende ver cumprida, o diploma prevê sanções pesadas a quem não a cumprir.

E como tem sido a prática efetiva dos mass media em matéria de cobertura das campanhas eleitorais? Tirando o inaceitável blackout informativo das últimas duas eleições — inconcebível numa qualquer democracia com um mínimo de autoridade (!), sobretudo tendo em conta que as licenças passadas pelo Estado obrigam ao cumprimento da lei e das regras democráticas (!) , aquilo que podemos dizer é que as TV favorecem desmesuradamente PSD e PS (em termos do número de notícias sobre a campanha), nomeadamente face aos partidos médios (CDS-PP, PCP/CDU e BE), e praticamente ignoram os micropartidos (ver Carla Luís, "How to regulate the messengers? Insights from electoral media coverage in Portugal", publicado em 27-5-15). Mas o favorecimento dos media às forças políticas dominantes, em particular, e às ideias dominantes, em geral, é evidente em várias frentes. Vejamos três exemplos. Primeiro, hoje em dia, ou até há bem pouco tempo, o comentário político no prime time das TV generalistas era praticamente só ocupado por figuras do PSD (Marcelo na TVI; Morais Sarmento na RTP; Marques Mendes na SIC). Segundo, há inúmeros programas de debate político nas TV e nas rádios que incluem apenas figuras ligadas ao PSD e ao PS, eventualmente também ao CDS. Terceiro, entre os comentadores de economia claramente sobrelevam as figuras ligadas ao mainstream neoliberal. Só isto já devia ser motivo para a Entidade Reguladora pedir estudos às universidades sobre o tema e para atuar consequentemente. Mas nada acontece ou aconteceu… ERC quer dizer o quê? 

Admitamos que a lei precisa de ser afinada, por exemplo, substituindo a ideia de "igualdade de oportunidades das candidaturas" por "equidade de oportunidades das candidaturas", que é um conceito que permite uma relativamente maior latitude interpretativa. Seja como for, uma matéria sensível para o funcionamento da democracia como esta nunca devia ser reformada em cima do ato eleitoral, muito menos a reboque dos interesses dos grandes conglomerados mediáticos e sem um estudo comparativo fundado sobre o statu quo em Portugal e a realidade noutras democracias com o nosso modelo constitucional. Pois foi isso que a direita no poder e os socialistas propuseram recentemente. O projeto de lei da direita é apesar de tudo muito mais bem construído do que o do PS: acautela pelo menos um tratamento equitativo dos partidos parlamentares e é uma lei que prevê sanções para o seu incumprimento. O do PS põe todo o poder discricionário nos mass media e não prevê sanções seja para o que for. Em qualquer caso, estamos perante projetos que contemporizam com uma cartelização do "mercado político" por via de coberturas mediáticas enviesadas, seja a favor dos grandes (no caso do PS), seja a favor dos partidos com representação parlamentar (no caso da direita). Num contexto de fortíssima erosão da democracia na Europa, com os cidadãos imensamente descontentes e desconfiados dos partidos, da democracia, das instituições, a inovação política com a entrada de novos competidores no "mercado político", tal como tem acontecido em Espanha, em Itália, na Grécia, etc., pode ser a garantia da renovação da democracia e, portanto, do seu robustecimento, uma vez passada a crise. A contrario, tal inovação política tem tido muita dificuldade em afirmar-se em Portugal, com o prejuízo inerente para a democracia. Tal terá a compressão do pluralismo nos mass media como uma das suas raízes mais fortes; algo que poderá agravar-se mais nas próximas eleições. Se assim for, perderá a democracia, perderemos todos.

Politólogo, professor do ISCTE-IUL; subscritor da Plataforma eleitoral Partido Livre/Tempo de Avançar