“O que faz afinal de um bairro um bairro?” Uma peça de teatro, talvez

“O bairro” do Teatro Independente de Paranhos (Tipar) é uma peça de teatro com o objectivo de quebrar o estigma em redor de muitos bairros sociais do Porto.

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Rita França

O protagonista vai à procura da delinquência juvenil e da apatia social para as pôr em película mas é confrontado, em vez disso, com o associativismo de moradores e as opiniões realistas e convictas dos membros da família.

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O protagonista vai à procura da delinquência juvenil e da apatia social para as pôr em película mas é confrontado, em vez disso, com o associativismo de moradores e as opiniões realistas e convictas dos membros da família.

Tudo começa na casa de uma avó, à hora de almoço, onde a lente atenta e intrusiva de uma câmara a impede de colocar a mesa pronta para os netos e a filha almoçarem. O documentário é a prioridade do professor e do ajudante que o acompanha. Os netos, a filha e a sala desimpedida são as preocupações desta avó, ainda pouco consciente do que o documentário verdadeiramente implica.

O actor Francisco Santos, que interpreta o professor Malaquias, diz que “a sua missão na peça” é personificar uma crítica à sociedade. Já Ricardo Alves, responsável pela encenação e escrita de “O bairro”, afirma que a aposta na personagem passou por caracterizá-la como alguém “de esquerda, com a necessidade de defender o Estado social”, mas que “não está interessada em ver além do próprio umbigo”.

A peça pretende aproximar-se da realidade dos bairros do Porto, que é muito mais complexa do que a imagem estereotipada muito comum a quem os vê de fora. “A delinquência, a marginalidade, o fracasso estão em toda a sociedade. Não é um parasita do bairro ou da ilha”, defende Francisco Santos. A função das personagens de Beatriz Furtuoso (Joana) e André Martins (Pedro) é mostrar precisamente que nos bairros há muito mais a acontecer. Ela é uma especialista em engenharia química, prestes a começar o mestrado nos Estados Unidos com as despesas pagas pela empresa onde trabalha. Ele é um artista de rua que toca harpa. Os dois são irmãos e vivem com a mãe no apartamento da avó, num qualquer bairro social da cidade.

As actividades de ambos levam o professor a considerá-los excepções à regra. A Joana, porque trabalha num call center especializado e o Pedro, porque a harpa não é aparentemente um instrumento musical que se associaria a um jovem que vive no bairro. “Aberração estatística” é a designação que o professor Malaquias atribui ao jovem porque não o considera, a ele e à irmã, representativos do bairro. O professor Malaquias questiona mesmo a continuidade do documentário: “Mas que é que se passa aqui?! Eu assim não vou conseguir fazer o meu documentário! Vocês estão a fazer tudo mal”. Para o professor, Joana deveria ser uma “mulher-a-dias” e Pedro deveria estar dedicado ao hip hop e não à música clássica.

A actriz Andreia Dias, de 35 anos, dedica-se ao teatro desde os 13 anos e vive num bairro social. Para ela, a diversidade de pessoas e histórias são a realidade do lugar onde vive, logo a delinquência não tem de ser uma via. “Mais do que levar a peça aos moradores, acho que é importante levá-la até às pessoas que criam estereótipos do que são os bairros”, afirma.

A personagem que interpreta, Maria Fernanda, é uma mulher desempregada que se vê obrigada a ir viver com os filhos, Joana e Pedro, para a casa da mãe. O marido emigrou e tudo o que está a ocorrer na sua vida deixa-a desanimada. Mais do que a vida no bairro, a peça retrata a sociedade portuguesa actualmente: filhos que regressam à casa dos pais, porque não conseguem ultrapassar as restrições económicas.

A dinamização cultural e social acompanha a vida de Maria Fernanda e dos filhos na associação de moradores e contribui para o reconhecimento de que existe vida no bairro para além dos problemas sociais. Isto foi também algo de que Ricardo Alves se apercebeu quando iniciou a pesquisa para escrever a peça e que o levou a desenvolver um trabalho que procura contribuir para a reflexão sobre estes espaços, tantas vezes desligados do resto da cidade.

Ricardo Alves baseou-se nas conversas que teve com os moradores de bairros sociais para escrever a peça, e percebeu que estes lugares estão diferentes do que eram. “O que eu sinto que mais mudou nos bairros foi o desaparecimento de associações, de instituições que já estiveram nos bairros e que entretanto saíram. O que existe hoje é, sobretudo, o associativismo de moradores”, afirma. Projectos como o Teatro Independente de Paranhos (Tipar) procuram remar contra a maré desta inactividade nos bairros. Para o encenador, a companhia deve ser valorizada pela “coragem para construir algo pequeno” e que envolva a comunidade.

A solidariedade que se encontra num bairro ou numa ilha acaba por estar presente no trabalho da companhia. André Martins tem formação em Teatro e não duvida que o teatro profissional é diferente do amador, sobretudo no que toca ao público. “Esta peça é o que eu idealizo no teatro e o que me levou a aceitar a proposta do Tipar. Não é o teatro erudito, as pessoas identificam-se. Não é o teatro para as pessoas, é com as pessoas.”, defende.

André Martins e Beatriz Furtuoso são os únicos actores com formação na área, já Francisco Santos, Fátima Costa, Andreia Dias e Diogo Muge são actores amadores, mas com “historial” no percurso do Tipar. Para Rui Dias, director da peça, o evento “descentralizou a cultura para Paranhos”. Porque, defende, a cultura não deve estar fechada numa única casa de espectáculos, ela pode e deve acontecer “noutros sítios da cidade.” 

Texto editado por Ana Fernandes