“Os miúdos aprendem que a pessoa mais agressiva é quem tem mais poder”

"Houve uma necessidade evolutiva de uma hierarquia e de agressão. Já não precisamos destes comportamentos para sobreviver mas eles persistem", diz a especialista norte americana em bullying, Sheri Bauman.

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A psicóloga Sheri Bauman é especialista em bullying Nuno Ferreira Santos

Existe uma história do bullying?
Pode-se dizer que existe bullying desde que há seres humanos na Terra. Mas a primeira investigação é da década de 1970, na Noruega, foi levada a cabo por Dan Olweus [professor de psicologia], que se interessou pelo problema depois de ter havido três suicídios de crianças numa escola, que se descobriu que estavam ligados, estavam a ser vítimas de bullying. Foi um caso que galvanizou o pais. Quando se começou a investigar a questão em termos científicos constatou-se que havia muitos mitos e mal-entendidos sobre esta questão que não faziam qualquer sentido.

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Existe uma história do bullying?
Pode-se dizer que existe bullying desde que há seres humanos na Terra. Mas a primeira investigação é da década de 1970, na Noruega, foi levada a cabo por Dan Olweus [professor de psicologia], que se interessou pelo problema depois de ter havido três suicídios de crianças numa escola, que se descobriu que estavam ligados, estavam a ser vítimas de bullying. Foi um caso que galvanizou o pais. Quando se começou a investigar a questão em termos científicos constatou-se que havia muitos mitos e mal-entendidos sobre esta questão que não faziam qualquer sentido.

Por exemplo?
Aceitava-se o bullying como algo normal, dizia-se coisas como: ‘toda a gente passa por isso e ultrapassa’, ‘faz parte do processo normal de crescimento’, ‘eu passei por isso fiquei mais forte’, ‘só os rapazes é que são bullies’. Não se fazia nada para o impedir porque não era visto como uma coisa importante, Se toda a gente passa por isso porquê preocuparmo-nos?

Descobriu-se então que havia motivo de preocupação...
As investigações mostraram que está associado com a depressão, com o isolamento dos pares, com ansiedade. Constatou-se que os agressores têm mais probabilidade de virem a desenvolver comportamentos de delinquência juvenil, de virem a ser presos em adultos.

É possível traçar um perfil da vítima de bullying?
Crianças mais pequenas, mais fracas, mais tímidas, deprimidas e ansiosas, que não têm boas competências sociais, que podem não ter as vantagens de outras crianças, por exemplo, se toda a gente anda com uns sapatos de marca e a criança não tem dinheiro para os comprar... É a criança isolada sem amigos, sozinha.

As investigações dizem que há grupos específicos que tendem a ser alvos preferenciais...
As crianças com algum tipo de deficiência, que andam na educação especial, que têm direito a senhas de almoço na escolas, que são vistas como sinal de pobreza, migrantes tendem a ser alvo de bullying com mais frequência do que outras crianças.

É o ser diferente?
O que é determinante é ser a minoria. Mas tudo depende do contexto. Conduzi um estudo numa escola onde a maioria da minha amostra eram miúdos brancos de origem anglosaxónica e havia uma minoria de hispânicos e estes, neste caso, tendiam a ser mais vitimas de bullying. E encontrei o contrário, numa pesquisa que fiz numa escola junto à fronteira com o México, onde a maioria dos alunos eram mexicanos, eram os brancos que tendiam a ser mais vítimizados. Existe uma necessidade para a conformidade e quem ameaça isso, no sentido de que ‘somos todos iguais’, tende a ser mais vitimizado.

É a lei da sobrevivência, como no início dos tempos.
É a lei dos mais fortes. Se pensarmos nos primeiros seres humanos a existência de uma hierarquia era importante. Se há um grupo de famílias que vive na nossa caverna e chega um agressor de outro grupo de famílias, ou um tigre para nos atacar, não temos tempo para decidir ‘como é que nos podemos organizar?’. Não, precisamos de saber que ‘x’ é o topo e nós fazemos todos o que ele disser. Houve uma necessidade evolutiva de ter uma hierarquia. A necessidade de agressão, de hierarquia foi muito importante para os grupos sociais. Mesmo que hoje já não seja tão importante persiste, torna-se um traço das interacções sociais. Todos os nossos governos são hierárquicos. Já não precisamos destes comportamentos para sobreviver mas eles persistem.

Como se continuássemos a ser primários?
Os miúdos são óptimos a observar quem é o mais poderoso. Quando vêem que a pessoa mais agressiva tem mais poder, vantagens, melhores empregos, assimilam ‘este é um comportamento útil, vou imitá-lo’. Temos todos estes programas e intenções para ajudar os miúdos a melhorarem os seus comportamentos e queremos educar os nossos filhos a tratarem-se uns aos outros de forma bondosa, mas, nos Estados Unidos, os políticos, as celebridades são o oposto do que queremos ensinar os nossos filhos a ser. É uma contradição, é confuso. O que eles vêem à sua volta é exactamente o oposto do que lhes queremos ensinar.

Nas suas investigações constata que muitos miúdos vitimizados não contam aos adultos. Porquê?
Eles sentem que ainda correm o risco de serem vistos como queixinhas. Contar a alguém é visto como um acto de cobardia. Alguns acreditam que os professores não são úteis. Que contar pode piorar ainda mais as coisas e eles não querem correr esse risco.

O que é que os adultos podem fazer, neste caso os professores, para melhorar a situação quando as crianças a decidem denunciar?
Uma das formas de agir que as investigações provaram que os miúdos valorizam é quando o adulto diz que vai agir, e depois faz o follow up, dois dias depois, uma semana depois. A seguir, o comportamento que se comprovou ser mais útil é simplesmente ouvi-los, mostrar preocupação, é eles entenderem que são levados a sério.

Em vez de desvalorizar...
Se um miúdo tem uma pequena borbulha e diz que lhe chamam “cara de pizza”, como me aconteceu a mim quando era pequena, responder ‘isso é uma palermice’ não ajuda. Tem de se tentar perceber até que ponto a criança se sente humilhada e com medo. É importante perguntar-lhe até que ponto isso a perturba e não pressupor que a situação só é grave quando a criança está a ser agredida violentamente. A seguir, o que mais ajuda é aconselhar. O professor pode não intervir publicamente na aula, pode dizer apenas ‘talvez se tentares isto’ e depois falamos outra vez para ver como correu. Muitas campanhas antibullying nas escolas incluem apresentações na aulas, trazer um orador para falar sobre o assunto, a investigação diz que este tipo de iniciativas não tem grandes efeitos.

Há comportamentos dos adultos que tornam as coisas piores?
Há coisas completamente contraproducentes. Não ajuda dizer-lhes ‘estás a ser queixinhas’ e isso acontece, por mais que nos surpreenda. Eu sou testemunha-perita num julgamento que está a decorrer em que um miúdo de 11 anos se suicidou, e uma das professora a quem ele se queixou disse-lhe ‘pára de te queixar a toda a hora’. Não se trata de queixar, é reportar, denunciar. Era um miúdo com fenda palatina que mesmo depois da cirurgia ficou com uma voz assobiada. Tinha havido queixas de bullying à directora, registo de trocas de emails dos pais com professores e nada se fez.

Há adultos que ignoram?
Muitos estudos dizem que 8% a 10% das denuncias feitas aos professores são ignoradas. E ignorar a denúncia e pensar que ‘faz parte do processo de crescimento’ é das coisas piores que se pode fazer nestes casos. Os currículos dos cursos de professores raramente contemplam as questões do bullying em profundidade. Passa-se algum conhecimento de background, diz-se por exemplo que há formas sociais, verbais ou físicas de bullying, mas não se dá ferramentas para lidar com o problema.