Uma menina-cão com emprego no supermercado

Rosa-Cão saiu do papel para o corpo de Ainhoa Vidal. O solo estreia-se sexta-feira em Sesimbra e faz uma apologia do lado indomesticável de cada um. Com música para orquestra ligeira de Pedro Gonçalves, dos Dead Combo.

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Mas a contradição não é coisa má, como se tenta fazer crer. Até porque não há contradição nesta personagem trazida para as três dimensões pela bailarina Ainhoa Vidal em Rosa-Cão. Aquilo que Ainhoa procura é enlaçar aquilo que há de “completamente selvagem” naquela menina a caminho de ser mulher com a sua “sensibilidade atroz”. “São esses dois opostos que, ao tocarem-se, dão a plenitude da pessoa”, diz ao Ípsilon.

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Mas a contradição não é coisa má, como se tenta fazer crer. Até porque não há contradição nesta personagem trazida para as três dimensões pela bailarina Ainhoa Vidal em Rosa-Cão. Aquilo que Ainhoa procura é enlaçar aquilo que há de “completamente selvagem” naquela menina a caminho de ser mulher com a sua “sensibilidade atroz”. “São esses dois opostos que, ao tocarem-se, dão a plenitude da pessoa”, diz ao Ípsilon.

Há uma luta constante em palco entre a natureza e a domesticação. Contando a vida desta Rosa-Cão, desde criança com um inegável fulgor animalesco até uma idade adulta em que essa sua condição é difícil de encaixar, Ainhoa guia-nos (com gestos e pequenas ilhas narrativas feitas de objectos espalhados pelo palco) através de uma tocante história de crescimento e de desajuste na relação com o mundo. Graças às imagens que vai projectando – com recurso a uma câmara de vídeo instalada num capacete ou a uma sequência de slides com várias ilustrações –, vemos como tudo quanto há de visceral e violentamente instintivo em Rosa-Cão, rapariga que uiva, que se banha em terra e usa roupas como máscaras de normalidade, se encontra sob a ameaça de uma vida padronizada. A domesticação social de que é alvo faz dela uma adormecida empregada numa caixa de supermercado.

Provavelmente, não haverá momento mais agressivo do que esse em toda a peça. Por mais que possa gritar, espernear ou assumir expressões de dor ou desespero, é na tristeza dessa máscara total que reside a mais intensa violência da vida desta personagem – que Ainhoa Vidal escreveu e desenvolveu a partir de um livro que lhe foi oferecido pela ilustradora. Rosa, que tem focinho de cão, nunca esteve tão disfarçada. “Ela trabalha num supermercado mas é uma artista”, diz a bailarina. “Só que apenas partilha esse mundo consigo própria.” Ainhoa cruza-se com muita gente que faz assim, como Rosa-Cão, anestesiando as suas vontades em favor de uma existência anódina e apagada. “Mas porque não tiveram a coragem de acreditar que é possível viver disto e ser muito mais feliz?”, pergunta. “Todos temos muitos fantasmas”, acredita. “Alguns seguem-nos a vida toda, outros seguem-nos durante um dia e há ainda uns outros que só o fazem durante algumas horas.” Rosa-Cão tem-nos a todos, fazem parte das várias peles que vai deixando em palco no seu processo de transformação num ser doméstico.

Mas o plano doméstico aqui é o da verdade. Sozinha em palco a dar corpo à história (OK, também há músicos e maestro, mas esses não dançam), a bailarina faz do palco “o lugar íntimo” da sua personagem. Sempre que está fora de casa, Rosa-Cão aparece desenhada – a sua história de amor, por exemplo, está costurada num lençol. Claro que é um amor falhado, porque “as pessoas têm medo da selvajaria dos outros, ficamos todos reduzidos a uma parte de nós”, diz Ainhoa, justificando o medo gerado pela sua personagem ao não escolher um simplificador “lado bonito, lado inteligente ou lado do ser social”. “Não podemos esquecer que o humano também é animal. Esta relação que tínhamos com a terra, e temos cada vez menos, é importantíssima porque se não ficamos de plástico, como nas prateleiras.” Prateleiras de supermercado, evidentemente. E é por isso que Ainhoa faz de Rosa-Cão uma mulher solitária. Para não se ver amputada: perde o amor por não ser dócil, ganha uma solidão de uma beleza inteira. “A maioria das pessoas escolhe os outros e não a sua natureza”, acrescenta a autora e intérprete de Rosa-Cão.

A figura de Rosa-Cão ecoa também a série de quadros de Paula Rego Mulher Cão, nessa confluência espantosa entre inocência, idade adulta, perversidade e animalidade. “Enquadro-me muito bem nesse universo da Paula Rego”, confessa Ainhoa. “Revi muito esses quadros para conseguir este lado animal. Da mesma maneira que vi animais a uivarem ou a moverem-se.”

Música para 12
Rosa-Cão é uma homenagem assumida àqueles que Ainhoa Vidal acredita serem capazes de recusar sacrificar-se por inteiro ao único papel social que lhes é pedido. Por isso, a peça que se estreia a 22 e 23 no Cineteatro João Mota, em Sesimbra, seguirá depois para Palmela, Montijo, Alcobaça, Alcanena e Santarém, sempre com orquestras ligeiras locais a interpretarem a música original de Pedro Gonçalves, dos Dead Combo. Foi o músico, na verdade, a empurrar Ainhoa para a criação deste solo. Após o desafio inicial de um festival brasileiro para que apresentasse um solo na sua edição deste ano, disse-lhe ele: “Tens de o fazer para as pessoas verem a tua relação muito particular com a dança.”

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Ainhoa achou que valeria a pena investir na exploração deste universo pessoal em que a dança acontece aconchegada por uma série de objectos que se vão revelando ao longo da peça. Voltou, ainda assim, com uma condição: “Eu faço um solo, mas tu fazes a música." Pedro aceitou e no dia seguinte informou-a de que seria música para orquestra. Ela afligiu-se, mas rapidamente concluiu que queria dedicar-se a combater a ideia de que “a dança tem cada vez menos público e é mais difícil de ser lida”. “Inclusive pessoas de outras artes dizem que não percebem, e interessa-me muito que se volte a saber ler a dança como se sabe ler o teatro ou a música.”

A música composta por Pedro Gonçalves para um colectivo de 12 elementos apenas se silencia durante o momento em que Ainhoa canta baixinho Las simples cosas, tema popularizado por Chavela Vargas. É uma canção que “tem um lado terreno, é densa, tem peso, cantada por uma mulher com os pés bem assentes no chão”, em louvor a coisas simples como ter pão numa mesa sobre a qual o sol se vai derramando. Coisas simples e pequenas que “atravessam o corpo, os afectos, e que no dia-a-dia, pela quantidade de informação que temos, muitas vezes esquecemos”. E é disso que Ainhoa quer se lembrada – da vida íntima, daquilo que mal sai da luz solar parece não ficar na sombra mas desaparecer para sempre.