Laços de família, estilhaços de família

O que é a família? Coincidência ou não, as quatro longas-metragens em competição nacional no IndieLisboa têm coisas a dizer sobre isso.

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Um filme freudiano

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Um filme freudiano

O que é a família? Um buraco. Não é por acaso que o novo filme de Catarina Mourão se chama A Toca do Lobo. Ele começa profeticamente com uma descida: uma vez, numa sessão de hipnose, a mãe da realizadora imaginou-se no alto de uma grande escadaria; ao descer, encontrou o pai, figura ausente, a quem disseram que desse a mão; ela acordou, em lágrimas, no momento em que deram as mãos.

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A Toca do Lobo DR

Tem qualquer coisa de Alice no País das Maravilhas esta expedição ao mistério de uma família: há encontros fantásticos, portas fechadas, uma tia sentenciadora. Quando uma realizadora volta a câmara para a sua própria família, isso não é necessariamente familiar. “Quando abro os álbuns de família da minha mãe há uma sensação de estranheza porque não tenho familiaridade nenhuma com aquelas pessoas”, diz Catarina Mourão, 46 anos, notando que o lado paterno da família lhe foi sempre mais próximo e lugar de afectividade.

A Toca do Lobo começou como um projecto do doutoramento que a realizadora está a fazer na Universidade de Edimburgo, na Escócia. A ideia inicial era, explica, “explorar a questão das memórias que bloqueamos, os sonhos, o inconsciente e como isso é representado no cinema”.

A sessão de hipnose da mãe era o catalisador disso, mas Catarina Mourão não tinha pensado em fazer um filme sobre a sua própria família. Quando ela olhava os álbuns de fotografia, a sua família parecia-lhe “igual às outras – acomodada e funcional”, como diz no filme. Mas a descoberta de um antigo programa de televisão nos arquivos da RTP com o avô materno, que ela nunca conheceu, foi profética: o avô parece estar a falar-lhe directamente, de um tempo em que Catarina ainda não era nascida. “Aí foi o momento em que eu disse: este filme tem de ser sobre o meu avô. Porque senti que, de uma forma quase fantasmagórica, ele me estava a convocar para fazer este filme.”

O avô de Catarina, Tomás de Figueiredo, publicou vários livros, mas A Toca do Lobo não é um filme biográfico. É, antes, uma investigação obstinada onde as memórias de família são confrontadas e postas em causa. Por que é que a mãe de Catarina cresceu longe do pai? Por que é que ele foi internado num hospital psiquiátrico? É verdade que quis entregar o próprio filho à Pide?

Muitas das histórias que a família contou a si própria para sobreviver são falsas. “O filme está cheio de ficções”, diz a realizadora. “O objectivo não é encontrar ‘a verdade’ e responder a todas as questões. Pelo contrário: não sei até que ponto não saio do filme com mais perguntas ainda do que quando comecei. Não sei se sei mais ou se sei menos do que sabia inicialmente.”

Este não é um filme sobre o passado, como se ele estivesse inerte, à espera de ser desvendado ou descrito. O filme assenta numa cadeia transgeracional, freudiana: sendo um filme sobre o avô de Catarina, é também um filme sobre a sua mãe, e um filme sobre a realizadora, como se cada um se prolongasse no outro. Até os filhos de Catarina estão no filme, implicados, como se a genealogia fosse uma conexão inescapável. “Passado, presente e futuro estão todos juntos ali como se fossem um só”, resume.

É um filme diferente dos anteriores por incidir sobre a família da realizadora? Por colocar a mãe à frente da câmara? “A proximidade da história de família, não acho que seja muito diferente. Agora, com a minha mãe, sim. Filmei a minha mãe milhares de vezes. Da primeira vez o microfone não funcionava, da segunda vez o enquadramento não estava bem. Eram actos falhados contínuos”, diz Catarina Mourão. “Apesar de ser a minha mãe, em cinema as pessoas são sempre outra coisa. E isso não é diferente de qualquer outro filme. Foi preciso tempo. Se não, mais tempo ainda. Porque eu conheço-a, portanto topava quando é que a minha mãe se estava a defender.”

O filme é narrado na primeira pessoa pela realizadora, que também aparece – questionando a mãe ou organizando fotografias e documentos como um detective. “Eu sabia que eventualmente a minha voz iria  aparecer. Mas mal comecei a filmar a minha mãe, não me pareceu justo ela estar ali sozinha. Achei que havia momentos em que eu teria de estar com ela. Apareço com ela e depois apareço mais em ligações a coisas, de costas, a mexer nas coisas. Achei importante esse lado de ‘escritório’. É muito um filme de papelinhos, de coisas que se colam.”

Vertigo

Gipsofila também é um filme sobre a família e ligações umbilicais. E também é um filme que integra o seu próprio processo de procura no resultado final, mas aqui não há segredos nem omissões nem tabus familiares a propulsionar o caminho. Gipsofila parece ser feito com muito pouco: a realizadora, Margarida Leitão, levou a câmara para a casa da avó, sem programa prévio nem intenção muito definida, e foi filmando a rotina das duas, fechadas naquele espaço.

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Gipsofila DR

O filme, um documentário, é um trabalho de mestrado. “Depois de vários anos a fazer filmes – curtas de ficção e documentários – senti a necessidade de repensar a minha prática de cinema. Isso foi motivado pelo meu regresso à escola de cinema para tirar o mestrado”, explica Margarida Leitão, 39. “Tive vontade de pegar eu na câmara, coisa que nunca tinha feito até agora porque trabalhei sempre com directores de fotografia.”

Gipsofila não é tanto um filme sobre a avó quanto um filme com a avó. Era uma ideia que a realizadora tinha há muito tempo. Parecia um projecto “muito acessível e fácil de executar”, mas essa proximidade e facilidade eram enganadoras porque ele foi sempre sendo adiado face a outros filmes “mais urgentes e com financiamento”. Mas quando Margarida quis voltar às origens da sua relação com o cinema “fazia todo o sentido” voltar às suas próprias origens, como diz. “Queria fazer esta experiência de cinema com alguém que me fosse próximo e íntimo.”

A realizadora vai mais longe do que o habitual nessa intenção. Ela convoca a cumplicidade da avó no próprio processo de filmagem. A posição da câmara, os jogos de luz, os enquadramentos são negociados ou partilhados com a avó – e esse processo, do que é normalmente dito entre takes, é mostrado no filme.

Sendo um filme que surgiu da vontade de fazer cinema como se fosse a primeira vez, interessava-lhe questionar as fronteiras do filme. “O filme começa só quando é dito ‘acção’ ou começa antes disso? Eu queria esbater isso.”

Apetece dizer que o filme é das duas, neta e avó. Tal como no filme de Catarina Mourão, é o cinema que potencia essa relação (a certa altura, em A Toca do Lobo, a realizadora diz: “Se não fosse o cinema não estaria a viver estas experiências”). “O cinema criou outra dimensão: partilhar com a minha avó o que eu faço ou procuro fazer”, diz Margarida Leitão.

“Se eu não me obrigasse a fazer este filme, se calhar tinha passado menos tempo com ela. Eu queria esta rotina: um dia filmamos, outro dia não filmamos tanto, um dia estamos bem, outro dia não estamos, um dia rimo-nos o tempo todo. Não me interessava fechar o filme numa coisa biográfica ou confessional. Queria que as coisas fossem vividas no momento, no presente. Queria que o filme fosse livre.”

Talvez seja um filme sobre ela, Margarida, com a ajuda da avó (é um filme quase político na forma como dá a ver, aparentemente sem filtro, a intimidade e vulnerabilidade da realizadora). Por vezes, parecem duplos uma da outra. “Sinto mesmo uma projecção minha nela e dela em mim. Não tenho outra relação assim. Como ela é que há este espelho. Sempre gostei de usar reflexos e espelhos nos meus filmes, é uma obsessão minha. Se calhar agora é um espelho mais humano. Fui à procura do meu reflexo.” Ela também diz: “É a primeira vez que filmo uma história de amor.” É isso, o cinema.

Uma família real

No início de Os Olhos de André há um aviso: “Esta é uma história verdadeira, representada pelas pessoas que a viveram.” Depois de fazer uma comédia em Arcos de Valdevez interpretada por gente local, não-actores, há cinco anos, António Borges Correia soube da história de um pai que vivia com quatro filhos, o mais novo dos quais tinha sido colocado numa família de acolhimento. O tribunal exigia um teste de paternidade para devolver a criança ao pai, mas este recusou, não por recear que o resultado fosse negativo mas porque isso não era decisivo para querer o filho de volta ou não. António Borges Correia, 49, telefonou ao homem perguntando se podia fazer um filme com a história dele. Disse que sim.

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Os Olhos de André DR

“Interessou-me fazer um filme sobre a família. Interessava-me aquilo que eu senti quando conheci as pessoas envolvidas: o amor incondicional de uns pelos outros. E o facto de quererem recuperar o filho mais novo para a família. Estiveram sem o irmão durante dois anos e foi uma luta constante. Foi essa persistência que me captou.”

Há uma ausência notória em Os Olhos de André – o seu núcleo é masculino, a mãe não existe – mas o filme olha para a família como uma unidade protectora, lugar de empatia. É uma família proletária, rural, órfã. Vivem com poucos meios mas têm-se uns aos outros.

Das quatro longas-metragens na competição nacional, é a mais optimista, ou menos turbulenta, na forma como dá corpo a uma família. É mesmo uma comédia – rarefeita, como nos filmes de Aki Kaurismaki, mas sem o pessimismo do cineasta finlandês. Os diálogos são mínimos, o burlesco irrompe do imobilismo dos corpos e da expressão dos rostos.

É também o único dos quatro filmes que se assume inteiramente como ficção, apesar de se basear numa história verdadeira e de isso ser explicitado logo no início para causar um efeito de real. Mais: o filme é interpretado pelas mesmas pessoas a quem a história aconteceu.

O realizador descreve Os Olhos de André como uma “abordagem de ficção, mas com aquilo a que Bresson chama de modelos”. “Não me interessava a naturalidade, mas sim a natureza. Não me interessava que os actores estivessem a pensar sobre o que estavam a fazer”, diz. Queria que fossem em ver de parecerem. Pediu-lhes para não representarem. “Este filme nunca poderia ser a mesma coisa com actores profissionais. Quando vamos ao cinema estamos a ver actores a fingir. Aqui estamos a ver as próprias pessoas a ser e a recompor aquilo que já lhes aconteceu.”

Conflito de gerações

Márcio Laranjeira chamou a Uma Rapariga da Sua Idade, primeira longa-metragem, uma “novela documental”. “Não há nada ali que não tenha efectivamente acontecido”, diz o realizador de 32 anos. Se tivesse dinheiro para filmar uma ficção, matéria imaginária, ele fá-lo-ia, mas começou a fazer Uma Rapariga da Sua Idade “quando o cinema parou”, isto é, em 2012, quando o sistema de financiamento foi suspenso e a produção nacional encalhou. O país estava em crise, toda a gente estava em crise, Márcio estava sem trabalho. Havia dois cenários: arranjar um trabalho qualquer que não o “concretizasse em nada” ou resistir. Márcio escolheu o segundo. Ele tinha uma actriz, Mariana Sampaio, e um director de fotografia, Sérgio Braz, a quem estava a acontecer o mesmo. “Acabámos por nos agarrar os três a algo que queríamos fazer. Estávamos a evitar viver essa crise ou a adiá-la. Os meus amigos estavam desempregados, eu também estava sem trabalho mas não me apetecia aceitar que estava a acordar de manhã para ir para um supermercado trabalhar. Para negar realmente isso, não podíamos viver de uma forma muito realista. E o que estávamos a fazer era a divertir-nos e a viver no delírio. E a ficarmos deprimidos no sia seguinte. Foi a isso que acabei por me agarrar porque era a história que tinha à minha frente. Ou a que não podia fugir.”

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Uma Rapariga da Sua Idade DR

Essa euforia está presente em Uma Rapariga da Sua Idade, tal como o day-after. É o filme de uma geração “encalhada”, como diz o realizador. Uma geração que não se identifica com os planos e aspirações dos pais. Uma geração que atira limões às pessoas que estão na paragem de autocarro de madrugada, para ir trabalhar. “Podiam ser todas a minha mãe”, diz Márcio Laranjeira. “A minha mãe acorda todos os dias às quatro da manhã para ir para a fábrica. Ela não pode não o fazer porque senão perde o apartamento que está a pagar ao banco e a luta de toda uma vida. Ela está a ganhar menos e houve muitos despedimentos. Mas se ela desiste agora, desiste de tudo. A nossa capacidade de sonhar o futuro já não chega tão longe como chegou a dos nossos pais. Se eu fizer o mesmo que a minha mãe – está tudo mal, então vou trabalhar para uma fábrica – estou a fazê-lo sem ser por uma luta. Sei o que ela projectou. Mas não sei o que estou a projectar se eu estiver ali na paragem de autocarro.”