Corpo de jovem actriz encontrado no teatro

Victor Hugo Pontes e Sara Carinhas buscam - e alcançam - a maior articulação possível entre corpo, voz e imaginação.

Foto
José Caldeira

Inspirado numa musa real, por quem a autora se enamorara, o livro conta a história fictícia de um jovem adulto, do século XVI, que um dia se transforma em mulher. Orlando vive, sem envelhecer, até ao século XX. O mito inventado por Woolf corresponde ao seu desejo e paixão. A autora busca na mitografia a força de expressão necessária para materializar a sua fantasia.

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Inspirado numa musa real, por quem a autora se enamorara, o livro conta a história fictícia de um jovem adulto, do século XVI, que um dia se transforma em mulher. Orlando vive, sem envelhecer, até ao século XX. O mito inventado por Woolf corresponde ao seu desejo e paixão. A autora busca na mitografia a força de expressão necessária para materializar a sua fantasia.

O projecto de Victor Hugo Pontes e Sara Carinhas é igualmente claro: o encenador e coreógrafo dá a ler ao público a leitura que a actriz fez da obra. Sara, por sua vez, leu Orlando com o corpo. Não é uma leitura linear, nem meramente verbal, a que é posta em cena neste espectáculo. Pelo contrário, os dois artistas tentaram reconstituir, ou até fazer de novo, a viagem pela imaginação de Woolf, como se todos e cada um estivéssemos a abrir o livro pela primeira vez, o pensamento tivesse a forma de fragmentos, e a intimidade do gesto da actriz fosse pública.

A realização é consequente: Sara Carinhas expõe-se, como pessoa, através do texto, das figuras e das imagens. Talvez não seja exactamente ela, ou talvez, pelo contrário, não exista outra pessoa, outra Sara Carinhas, além daquela que está ali em cena. Seja ou não uma máscara (as máscaras revelam tanto quanto ocultam) o que a actriz põe no corpo, a espontaneidade do movimento e do discurso ancora a fantasia do texto original.

Este é, de resto, um dos maiores trunfos dos actores e actrizes portugueses: o modo como conseguem revelar-se nas personagens que fazem, criando uma ponte entre eles e as figuras, que seduz e apaixona senão cada um dos espectadores, pelo menos o crítico. São muitos, aliás, ultimamente, os espectáculos em que a biografia, real ou aparente, dos actores se cruza explicita e deliberadamente com a biografia das personagens dramáticas. Porque será? As condições de vida concretas dos artistas de teatro em Portugal impõem-se às ficções dramáticas? Existe uma urgência maior na busca de um sentido para as coisas, que se procura nas obras de teatro e nos romances? A crença na experiência real como base do acontecimento teatral leva os criadores a apostarem nesse recurso?

Este Orlando não responde a todas estas questões, muito menos se elas disserem respeito a outros espectáculos, por muito parentes que sejam dele. O que se pode arriscar é que, considerando este mais os anteriores espectáculos de Victor Hugo Pontes e de Sara Carinhas, os dois artistas buscam a maior articulação possível entre corpo, voz e imaginação como meio de dominar a expressão cénica, reconstituindo pista a pista as ficções, para garantir que a actriz não esteja ausente nem a fingir. O corpo está lá. Até para fingir é preciso ser sincero.