A adorável Courtney Barnett ataca outra vez

Ao segundo disco, Courtney Barnett confirma que das duas uma: ou é a versão indie-rock de Winnie The Pooh ou de George Costanza. E isto é um grande elogio.

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Tudo isto – bem como o tom aborrecido da sua voz – faz sentido: se houve adjectivo usado para caracterizar Barnett após a sua gloriosa estreia foi slacker. Em parte pelas histórias que compunham o Double EP – invariavelmente pequenos acidentes que acontecem a quem leva a vida a fugir de responsabilidades, falha nos amores à conta da sua tendência compulsiva para dizer a coisa errada na hora errada, tem ataques de asma quando decide criar um quintalinho, etc. Mas slacker, também, pela forma de cantar, própria de quem se está nas tintas, de quem preferia estar no sofá a comer pizza e a ver má televisão do que a dar-se ao trabalho de acertar notas quando encontra forças para cantar uma melodia.

Que estreia, The Double EP: veio do nada, nem distribuição teve fora da Austrália, de onde Barnett é natural, e uns meses passados os links piratas eram furiosamente descarregados e partilhados. Até que em 2004 a rapariga que ninguém sabia quem era havia virado um ícone e tinha direito a palcos como os do Primavera Sound e a um culto ferrenho.

Não era para menos: do rock a abrir à canção pop inteligente, reminiscente dos Go-Betweens, que ela adora e considera “uma instituição”, A Sea Of Split Peas, dentro das restrições próprias do indie-rock, era o menu completo: linhas de guitarra viciantes, pequenas harmonias de piano a cambalear, o órgão ao lado, harmónicas esganiçadas, e um raro dom para colocar as sílabas no sítio errado da pauta e mesmo assim provocar-nos prazer. Não estamos a falar de pratos gourmet, antes de comida caseira, a pender para a tasca, mas com um toque único.

Agora ouça-se An illustration of loneliness, a terceira cançoneta do novo Sometimes I Think And Sit, And Sometimes I Just Sit, que é uma uma paráfrase do escritor A. A. Milne, o autor de Winnie-The-Pooh: “Sometimes I sits and thinks, and sometimes I just sits...”. A simples escolha de frase, ou de autor citado, ajuda a definir Barnett como um ser algures entre a preguiçosa bem-intencionada e a ingénua sábia.

An illustration of loneliness é aquilo que em futebol se chama “um falso lento”. Uma malha de guitarra move-se à velocidade de jumento e Barnett vai debitando sílabas naquele jeito meio Dylan em que cada vocábulo parece cair ao calhas nas entrelinhas da pauta. Uma segunda linha de guitarra, convenientemente desafinada, provoca um balançar de ombros. E aí começa o ruído, controlado, que faz a cabeça oscilar para a frente e para trás. Vamos na terceira canção e até aí só deu guitarras, com particular destaque para Pedestrian at best, que rompe pelas costuras de tanta energia, enquanto Barnett despacha uma das suas linhas inspiradas do costume: “Tell me I'm exceptional/ I promise to exploit you”.

“Não acho que seja muito esperta”, diz Barnett, despachando palavras à velocidade de um estivador com ciática. “Vejo o humor nas situações mais merdosas, mas isso não é particularmente original ou brilhante." Ela diz isto e nós ainda estamos a rir-nos daquela frase de Pedestrian at best: “I'm oversexed/ I must express my disinterest”, que na sua simplicidade resume bem algumas das ânsias das relações entre parceiros sexuais.

“Para ser sincera, nem acho que tente ser divertida”, continua, ao telefone da Austrália. Demonstra o mesmo grau de interesse na conversa que um iliterato em matemática em ir ao quadro para explicar uma derivada. “O que me parece é que tento ver até que ponto posso levar uma história sem ter medo de chegar ao absurdo, porque muitas das situações em que nos encontramos diariamente são absurdas." No tempo que ela demorou a proferir esta proposição, pausa após a pergunta incluída, lava-se o chão da cozinha, fazem-se torradas, lê-se o PÚBLICO, vai-se às compras e leva-se o miúdo às vacinas.

Parecer maluca 
Sabem aquelas pessoas que começam as frases por “Não” e depois dizem o oposto? As pessoas que dizem “Não, mas sim”? Barnett é o contrário. Acabada a frase anterior, diz: “Bem, sim, é verdade que quando posso faço rir e digo coisas de uma forma que acredito que as pessoas ainda não ouviram. Mas não as estou a dizer para parecer maluca. E não é suposto ser maluco. São factos, é o que aconteceu, mas com liberdade para ficcionar." Miss Courtney “não esperava o êxito do Double EP”. “Tens de perceber que o primeiro EP foi gravado em casa de um amigo, e editado a partir do meu quarto. Eram dois EP lançados com um ano de separação. Portanto fiquei chocada." Obviamente, deu por si a pensar o que raio havia de fazer a seguir, mas “se isso [lhe] entrou na mente por um instante” também “saiu de novo quase de imediato”. Porque “a consciência de que outras pessoas vão ouvir o disco seguinte só serve para distrair do processo”.

Ainda por cima, Courtney tinha uma vantagem: canções guardadas no baú. Ou, no caso dela, “espalhadas pela casa fora”. “Algumas canções demoraram uma semana a fazer, e quando aparecem três ou quatro num instante é um alívio. Outras ficam por aqui quatro anos, até que um dia”, presumimos que quando ela se lembra de aspirar, “tropeço nelas e decido acabá-las”.

É, admite, “um bocado preguiçosa” e às vezes fica "sem tocar durante uma semana”. Porquê? "Não me sai nada." Ah, a inspiração, essa malandra que insiste em não nos colocar as mãos na guitarra e mover os dedos de forma nunca vista.

De modo que, nessas alturas, e não tendo televisão, abanca no sofá “a ver séries no Mac”: “Broad City, House of Cards, que é divertida mas fodida, ou Arrested Development”. 

E isto é o máximo que se consegue obter de Barnett acerca dos seus processos de criação. Bem, ela também acrescenta que tenta “gravar tudo, em directo em estúdio, como banda, de modo a captar aquele som”, sem nada de excessivo, “nada demasiado produzido”, “o mais cru possível” porque “faz a música parecer mais verdadeira”.

Autobiografia
Courtney Barnett é uma personagem engraçada: em casa o pai ouvia jazz e o irmão mais velho emprestava-lhe os seus discos – foi assim que descobriu Jeff Buckley, por quem teve uma paixoneta em nova. Nessa altura, “a rádio era uma grande companhia”, o que se presume ser uma confissão de solidão. O seu professor de guitarra mostrou-lhe os Nirvana aos dez anos. Deram-lhe “a volta à cabeça”. Ao ponto de, a partir daí, não pensar em mais nada se não em fazer música – aos 18 começou a dar concertos e manteve “empregos em escritórios, em bares, a entregar pizzas, tudo”. Não se queixa: “Foi uma escolha deliberada, de modo a ter o máximo de tempo possível para me dedicar à música." Só este ano pôde pagar as contas à conta das suas canções.

A sua tendência natural para a auto-depreciação (a sério: alguém que a apresente ao Pedro Mexia ou vive-versa) leva-a a dizer que “cresces com a ideia de que há tantos músicos no mundo que nunca conseguirás ser um deles”. Aos dez anos já fazia canções, descritas como sendo “muito, mas mesmo muito más”. Com o tempo sentiu que a sua voz tinha qualquer coisa, mas só começou “a respirar fundo” e a acreditar em si mesma quando gravou o primeiro EP”. “Aí sim, fiquei contente, eram boas canções. Até então não gostava do que escrevia."

O actor Jason Alexander, que fazia de George Costanza na série Seinfeld (não é admirável como todo este texto está repleto de altíssimas referências culturais?) reclamou um dia com Larry David, criador e argumentista do programa, que a sua personagem tinha atitudes insanas e se punha a jeito de ser apanhado em situações que uma pessoa normal evitaria. “Como assim?”, respondeu David. “Tudo isso me aconteceu."

Com Barnett acontece algo de semelhante. Ouvimo-la cantar uma historieta sobre ir parar ao hospital por causa não saber usar a bomba de asma (enquanto um tipo por quem tem uma paixoneta a observa) e pensamos “Isto não pode ser real”. Pois bem: é. “É tudo muito autobiográfico. Pelo menos acho que é. Mesmo Elevator operator, a primeira canção deste disco, escrita na terceira pessoa, é autobiográfica."

Trocamos mais umas palavras, com o entusiasmo de quem acabou de ser chamado para a tropa e nunca sequer brincou com uma pistola de água. “Eu gosto do Keith Jarrett. No último ano descobri-o, alguém me deu um disco." Não sabe qual o disco, mas quer deixar claro o seguinte: “Sou uma pessoa muito normal. Não faço ideia como as coisas funcionam. Tenho 27 anos, como raio podia ter ideia de como as coisas funcionam?” As suas últimas palavras são “Desculpa esta entrevista." Faz uma pausa e acrescenta “Estou ensonada."

Não é adorável?