Com as mãos na massa da pura dança

André Mesquita reconfirma aqui o seu lugar como um dos mais consistentes e desenvoltos coreógrafos portugueses actuais.

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Do coreógrafo não se esperaria que da introspecção resultasse uma peça de pendor teatral: o que vimos, ao longo de 60 magnetizantes minutos, foi uma formidável coreografia abstracta, a deixar-nos literalmente suspensos no movimento seguinte, como se nos estivesse a ser contada uma empolgante história. Esta “eventual penumbra da ambiguidade” – o subtítulo da peça saiu de um texto sobre os labirintos da linguagem do filósofo e crítico literário George Steiner - demonstra-nos o quanto o território das alusões imprecisas pertence, por direito, às poéticas do corpo.  

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Do coreógrafo não se esperaria que da introspecção resultasse uma peça de pendor teatral: o que vimos, ao longo de 60 magnetizantes minutos, foi uma formidável coreografia abstracta, a deixar-nos literalmente suspensos no movimento seguinte, como se nos estivesse a ser contada uma empolgante história. Esta “eventual penumbra da ambiguidade” – o subtítulo da peça saiu de um texto sobre os labirintos da linguagem do filósofo e crítico literário George Steiner - demonstra-nos o quanto o território das alusões imprecisas pertence, por direito, às poéticas do corpo.  

Submersa numa meia-luz enevoada, o palco vazio é amiúde recortado por iluminação vertical, a desenhar pirâmides e cubos no espaço, ou rasgado por disparos de luz horizontal, a deixar apenas visível o tronco dos intérpretes, de fluídas camisetas transparentes do tom da pele e sóbrias calças escuras. Um reparo para o momento da expulsão de fumos, seguido de breves clarões, a requerer outra subtileza.

Mas, na zona esquerda do palco, está a peça-chave desta criação: ao piano, o vulto discreto de Simon James Phillips (n.1973 – em temporada como artista residente no Teatro Maria Matos) observa, com atenção cúmplice, os bailarinos, estabelecendo com eles um íntimo diálogo de improvisação estruturada: segue-os ou desafia-os, criando pausas, acordes avulso ou explorando o efeito cumulativo de motivos repetitivos, períodos de alvoroço ou de quietude. Esta assinalável organicidade de entrelaçar luz, sons e corpos em movimento, numa pulsação conjunta mas não linear, traz-nos uma consciência subliminar da passagem do tempo e representações da memória.

Mesquita soube extrair o melhor das características de cada intérprete: Teresa Alves da Silva, Filipa Peraltinha, Sylvia Rijmer, César Fernandes e Woody Santana, excepcionalmente focados e precisos, são donos de uma energia elástica, que ora dilata e os faz parecer gigantescos, ora recolhe numa contenção quase tântrica. Com solos, pares, trios ou em grupo, em acções dispersas ou em cânone, o movimento flui como a sucessão de largas marés; virtuosas frases coreográficas reformulam ou sabotam os seus próprios padrões; a limpeza técnica dos corpos é desfigurada por rastejos reptilíneos, revisitações ao tai-chi-chuan, respirações ofegantes, agachamentos de destreza felina e surpreendentes leituras do espaço. A cena final, quando as cinco silhuetas partem em diferentes direcções e se dissipam nos bastidores, é uma eloquente fábula visual sobre a transitoriedade dos cruzamentos humanos, dos ciclos da vida.

Obscuro, denso e inóspito, o universo estético do coreógrafo adquire, nesta co-criação com James Phillips, uma tonalidade serena, ou mesmo laivos de melancolia. Depois de um longo período em que as premissas da criação coreográfica foram questionadas até à exaustão, Mesquita reconfirma aqui o seu lugar como um dos mais consistentes e desenvoltos coreógrafos portugueses actuais: insiste meter as mãos na massa no âmago da pura dança, sustenta-a numa criteriosa escolha dos intérpretes, e coloca-a ao serviço de um notável saber-fazer em matéria de composição.