Terrorista em três linhas

O mundo disparatado, disfórico e desconexo de Félix Fénéon, sem Deus nem sentido

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Félix Fénéon na sua Revue Blanche: crítico de arte, jornalista, editor, galerista, negociante de arte, provavelmente bombista

Se, regra geral, o enfatuar dos dados biobibliográficos de um autor é meio para omitir o que mais importa, no caso de Félix Fénéon (Turim, 1864-Châtenay-Malabry, 1944) não é bem assim, posto que todas as circunstâncias da sua vida parecem ter sido alinhadas para fazer dele um mito, uma figura-fantasma ao mesmo tempo rocambolesca e indecifrável, personalidade literalmente fabulosa. Nele se produz uma espécie de proto-surrealismo, de antecipação futurista dos modernismos para que o próprio aponta. Fénéon, esse terrorista, é acima de tudo um moralista, como Jean Paulhan, amigo e futuro executor testamentário, classifica, comparável a La Rochefoucauld. Brilhante e taciturno, irónico, cáustico e sagaz, finíssimo na percepção do talento e da originalidade, enigmático, oblíquo, minimalista. Um dandy discreto, descrente e amável. 

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Se, regra geral, o enfatuar dos dados biobibliográficos de um autor é meio para omitir o que mais importa, no caso de Félix Fénéon (Turim, 1864-Châtenay-Malabry, 1944) não é bem assim, posto que todas as circunstâncias da sua vida parecem ter sido alinhadas para fazer dele um mito, uma figura-fantasma ao mesmo tempo rocambolesca e indecifrável, personalidade literalmente fabulosa. Nele se produz uma espécie de proto-surrealismo, de antecipação futurista dos modernismos para que o próprio aponta. Fénéon, esse terrorista, é acima de tudo um moralista, como Jean Paulhan, amigo e futuro executor testamentário, classifica, comparável a La Rochefoucauld. Brilhante e taciturno, irónico, cáustico e sagaz, finíssimo na percepção do talento e da originalidade, enigmático, oblíquo, minimalista. Um dandy discreto, descrente e amável. 

Deambulou neste seu tom pelo mundo: provavelmente bombista, e também crítico de arte, jornalista, editor, galerista, negociante de arte (o melhor olho clínico da época, para a detecção da qualidade de um artista, fosse ele das letras ou da artes plásticas). Promoveu e incentivou inúmeros autores, criadores de certa forma sempre em margem. Como editor, publicou na Revue Blanche que dirigia Rimbaud (Illuminations), Mallarmé (L’Après-midi d’Un Faune) e muitos outros (Gide, Apollinaire, Gauguin — o célebre manuscrito Noa Noa foi na dita revista divulgado —, Lautréamont, a vanguarda simbolista de Laforgue). Adepto do pós-impressionismo, dos jovens Nabis, em especial do pontilhismo, lançou Seurat. De resto, o mesmo pontilhismo pode ser considerado como a configuração plástica de Notícias em três Linhas. Conhecedor de todos os elementos relevantes do meio artístico, nunca foi um criador; antes um conector, um facilitador de encontros. Numa das muitas revistas em que escrevia, La Libre Revue, anunciou em 1883 um romance psicológico cuja estrutura é o seu perfil, em três linhas: “A Açaimada: primeira: 1ª Parte: Âh! – 2ª Parte: Duas borboletas violáceas pousam no músculo zigomático de Jacqueline. – 3ª Parte: A cama de Paul Sa. - 4ª Parte: O olho torpe do droguista impudico.” Foi convidado para escrever as suas memórias. Recusou. Foi-lhe mais tarde proposto reunir as Notícias em Três Linhas. Agastado, respondeu que aspirava apenas ao silêncio.

Os factos: infância passada na Borgonha, chega a Paris aos 19 anos. Torna-se funcionário (exemplar, distinguido) do Ministério da Guerra, onde trabalha 13 anos como redator; ao mesmo tempo, começa a frequentar os meios literários da capital e devém uma espécie de duplo de Baudelaire e Dorian Gray, versão anarquista praticante. Tomou parte, provavelmente, em 1894, do célebre atentado bombista ao restaurante Foyot, lugar mundano, frente ao Senado. As frequências anarquistas levá-lo-ão a comparecer perante o Tribunal Criminal no âmbito do Processo dos Tinta, que põe fim à agitação e aos atentados que abalaram a França dessa época. Defendido a expensas de um mecenas (o mesmo advogado do Caso Dreyfus). Ilibado, nunca porém a justiça deu por encerrado o seu dossier. Perante o juiz, o seu desplante e o seu riso atraíam audiência. No prefácio de Notícias em Três Linhas, descreve-se um exemplo da sua capacidade de manipulação. Tendo sido afirmado pelo juiz que o arguido fora visto a falar com um conhecido anarquista por detrás de um lampadário, Fénéon responderia: “Senhor Presidente, de que lado é o lado de trás de um lampadário?”. Acabaria absolvido pela sua sagacidade. Noutro momento, após uma busca ao seu escritório onde foram encontrados fósforos, 11 detonadores e mercúrio, defendeu que teria sido o pai, entretanto falecido, a encontrar esse arsenal improvável na rua. 

Acrescentem-se alguns factos aos factos. Actuais, apesar de o dispositivo ser então outro: a invenção e a banalização do telégrafo, a emergência de uma era eléctrica e já não mecânica da informação, a contiguidade do novo meio sensível com o impressionismo, o pontilhismo, a escrita minimal, imediata, a notícia breve, síntese da síntese do acontecimento sem importância, porém motor possível da grande literatura. Recordem-se Balzac, ou Flaubert. Ema Bovary nasceu e cresceu de um episódio lido, en passant, num jornal de Rouen. O acesso quase imediato à informação refaz a categorização de géneros, estilhaça o que se sentia como durée. Casos há em que a contaminação os indecide. É o caso de Notícias em Três Linhas, e não nos esqueçamos da polissemia de nouvelle: notícia e novela. Talvez poema em prosa seja o que de melhor se lhe adeqúe. Ainda outro facto antes do cerne: pela mão de um americano, surge, em 1884, um jornal que, conjuntamente com a recém criada agência Havas, é em tudo diferente de um Le Figaro — Le Matin, “jornal de informações telegráficas, universais e verdadeiras”, tinha como slogan “Le Matin sabe tudo, vê tudo, diz tudo”. 

Em 1906, Fénéon é contratado para redigir notícias em três linhas, micro-narrativas. Cruzamento de real e ficção cuja poeticidade advém da produção de um estilo único, irreproduzível. Aliás o autor é isso, um estilo. Notícias em Três Linhas conjuga o aqui e agora do telegrama, como âncora, sob um nome próprio preciso (a onomástica é de resto fundamental na arquitectura do tom, na consciência do eco reverberante no leitor; essa multiplicação de deícticos pontua a diagése). Numa arte minimalista, Fénéon manipula, antes de mais, a elipse, subverte a sintaxe. Respira-se o ritmo rápido do encadeamento dos eventos nas frases, são elididas muitas vezes as marcas de articulação lógica, o que provoca na leitura uma ainda maior surpresa. Um detalhe ou outro de um incidente quase sempre inverosímil toma a dianteira, inverte-se a ordem lógica dos constituintes do acontecimento, desloca-se subrepticiamente a focalização, e assim o habitualmente trágico torna-se farsa. Tal traduz visão a sua céptica do mundo aos retalhos: disparatado, disfórico, desconexo. Sem Deus nem sentido.

E o assunto das breves notícias: acidentes, muitos e variados acidentes, suicídios, homicídios, facadas. Estupros, violações, atentados. As esferas militar, judicial e eclesiástica não são poupadas. Aleatoriamente: “Louis Lamarre não tinha nem emprego, nem casa, mas uns tostões. Comprou, num merceeiro de Saint-Denis, um litro de petróleo, que bebeu.”; “O Sr. Dickson, de Choisy-le-Roi, errava pelo seu telhado. Um ladrão! Três polícias subiram e o sonâmbulo caiu de costas.”; “Quando o estouvado escultor Bombarès, que devia ter saído em Champigny, saltou do comboio já em andamento, veio um rápido e esmagou-o.”; “Munido de uma cauda de rato ilusivamente carregado de fino grés, foi encontrado um cilindro de lata na rua de l’Ouest.”; “A menina Paulin, de Mureaux, foi devastada por um sátiro (22 anos, atarracado, chapéu de feltro sobre cara oval).”. Mais deu uma centena de notícias assim.

Este é um dos livros mais importantes editados recentemente entre nós. Sublinhe-se ainda a qualidade da tradução, tarefa nada fácil.