Morreu o cineasta Albert Maysles, mestre do cinema directo

Documentários sobre os Rolling Stones ou as parentes decadentes de Jacqueline Kennedy mostraram o que até então não tinha sido filmado. Na América, esse olhar marca fim do idealismo dos anos 60.

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“O nosso querido amigo Albert Maysles morreu ontem à noite, aos 88 anos. Vimos coisas através da sua lente que nunca esqueceremos. Foi cineasta até ao fim da vida. Amávamo-lo e vamos sentir muito a sua falta”, anunciou a Criterion na sua página de Facebook esta sexta-feira à tarde. A revista Real Screen confirmou a notícia junto da filha de Maysles.

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“O nosso querido amigo Albert Maysles morreu ontem à noite, aos 88 anos. Vimos coisas através da sua lente que nunca esqueceremos. Foi cineasta até ao fim da vida. Amávamo-lo e vamos sentir muito a sua falta”, anunciou a Criterion na sua página de Facebook esta sexta-feira à tarde. A revista Real Screen confirmou a notícia junto da filha de Maysles.

Juntamente com o seu irmão mais novo, David, com quem fez uma parte substancial e a mais influente da sua filmografia, Albert Maysles foi um dos pioneiros do cinema directo – ou cinema verité – norte-americano, um estilo documental que fez escola nas décadas de 60 e 70 e que tinha como credo a captação da realidade em estado puro e o mais perto possível dos acontecimentos, como se a câmara não estivesse presente. Câmara móvel, ao ombro, som directo, nenhum guião, e uma liberdade para filmar o que até então não tinha sido filmado. Esta última característica ajuda a explicar por que é que o cinema directo ficou circunscrito a uma época. Quando os protagonistas desses documentários viram os resultados, o cinema directo perdeu a inocência.

Um dos exemplos mais emblemáticos dessa perda de inocência é, justamente, Gimme Shelter, o documentário que Albert e David Maysles fizeram em 1969 sobre o desastroso concerto gratuito dos Rolling Stones na Califórnia. Supostamente o documentário deveria registar a apoteótica digressão americana dos Rolling Stones no auge da contracultura e do flower power, mas a morte de um jovem negro às mãos do Hell’s Angels foi traumática – para a banda (os Maysles puseram os Rolling Stones a revisitar e a comentar o material filmado, na sala de edição) e para a América (Gimme Shelter é também, ou sobretudo, o momento que marca o fim do idealismo dos anos 60).

Grey Gardens, outro filme icónico dos Maysles, é um retrato de duas mulheres, mãe e filha, da alta sociedade – parentes de Jacqueline Kennedy –, que vivem isoladas numa casa decadente nos Hamptons, retiro de elites, como se continuassem a viver à grande.

No Porto em 2001

Em 2001, Albert Maysles esteve no Porto – Capital Europeia da Cultura, onde foi um dos convidados do ciclo O Olhar de Ulisses e, em particular, de um dos módulos de cinema documental designado A Utopia do Real, comissariado por Jorge Canpos e Dario Oliveira.

Em Março desse ano, o cineasta norte-americano apresentou no Teatro Rivoli dois dos seus filmes, Primary (1960), realizado por Robert Drew e onde assinou a fotografia, e Salesman (1968), uma realização sua. O primeiro registava a campanha eleitoral pela nomeação de candidato democrata à Presidência disputada entre J.F. Kennedy e Hubert Humphrey. O segundo retratava o dia-a-dia de quatro vendedores ambulantes da Bíblia.

Os filmes foram o pretexto para Maysles expor a sua visão do cinema documental, que enunciou desta forma simples: “Nenhuma criação ficcional é tão emocionante como o real” (“the real thing”). E acrescentou a esta divisa que o dever de um artista é mostrar a vida das pessoas vulgares, sem subterfúgios nem manipulações. Uma tese que, naturalmente, estava bem mais expressa em Salesman do que na reportagem sobre Kennedy e Humphrey – de resto, a crítica norte-americana tinha acusado Primary de favorecer a candidatura de Kennedy relativamente à do seu opositor, algo que Maysles contestou, então em conversa com o PÚBLICO, explicando que a voz off do filme – um expediente narrativo de que o realizador não gostava nada, mas a que teve de ceder para que ele pudesse ser exibido na televisão – tornava claro que Kennedy era um milionário de boas famílias, enquanto Humphrey era um provinciano simpático, por quem todos torciam.

Na sua intervenção no Rivoli, Albert Maysles disse não acreditar na distinção entre ética e estética, e expôs a sua posição evocando um pequeno episódio do mundo da indústria de Hollywood para demonstrar que o único adjectivo que se pode aplicar à chamada “estética” da Fábrica de Sonhos é ela ser dispendiosa. Contou que, a dada altura, o realizador Otto Preminger (Carmen Jones, Anatomia de um Crime) andava entusiasmado com Jean-Luc Godard e queria produzir um filme dele. “Quando lhe perguntou quanto é que custaria, e Godard disse que eram três ou quatro milhões de dólares, Preminger achou barato de mais e desistiu da ideia", lembrou Maysles, que, de resto, tinha também já colaborado com o realizador francês.

Sobre o estatuto do cinema documental, Maysles fez notar que a neutralidade do cineasta é impossível, e, em contrapartida, é a subjectividade que distingue o cinema directo dos reality shows. O documentarista expressa sempre a sua emoção perante o objecto que filma, porque se trata sempre de “um cérebro e um coração por trás da câmara”.

Albert Maysles continuou a filmar depois da morte do irmão David, em 1987, e só parou no fim da vida. Estreou no último Outono o documentário Iris, sobre a designer e ícone da moda norte-americana Iris Apfel, de 93 anos, e o seu último filme, In Transit, está prestes a estrear em Nova Iorque.

Com Sérgio C. Andrade