Tu

Tu e só tu és o resultado único e específico duma cadeia de esforços, de sangue, suor, lágrimas, sémen e todas as restantes secreções que remonta à escuridão das cavernas do Plioceno

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Fabiana/Flickr

Tu! Sim tu, meu leitor por desfastio ou acidente, por vício ou curiosidade. Tu que me lês apesar do basqueiro dos putos, do cão que tem de ir à rua, do gato que insiste em passar em frente ao monitor. Tu que me lês apesar de teres mais que fazer, apesar do chefe te poder apanhar, apesar da loiça estar por lavar, apesar de autores maiores te enfeitarem as prateleiras.

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Tu! Sim tu, meu leitor por desfastio ou acidente, por vício ou curiosidade. Tu que me lês apesar do basqueiro dos putos, do cão que tem de ir à rua, do gato que insiste em passar em frente ao monitor. Tu que me lês apesar de teres mais que fazer, apesar do chefe te poder apanhar, apesar da loiça estar por lavar, apesar de autores maiores te enfeitarem as prateleiras.

Sim tu! Hoje digo-te uma coisa que ninguém te lembra apesar de ser uma verdade óbvia e gritante: Tu e só tu és o resultado único e específico duma cadeia de esforços, de sangue, suor, lágrimas, sémen e todas as restantes secreções que remonta à escuridão das cavernas do Plioceno.

Tens atrás de ti milhares de gerações. Do hominídeo peludo e irreconhecível, que repetia e exagerava os mamutes caçados nas paredes da cova para seduzir a tua longínqua bisavó, à tua escorreita pessoa, vacinado e eleitor, alfabetizado e contribuinte, vem uma linha directa de ascendentes que foram sobrevivendo através de catástrofes quotidianas para nós inconcebíveis.

Os teus distantes avós viram o fim das glaciações, o erigir e cair de impérios feitos para durar para sempre, sobreviveram a pestes que em pouco dizimaram um terço da Terra, escaparam a guerras que duraram gerações, resistiram a invasões, participaram em migrações, conversões e revoluções, construíram vidas e famílias entre as patas dos cavalos dos tiranos e o chão que nunca deu que chegasse para as bocas todas; safaram-se a razias de “infiéis” e aos lumes da Inquisição, aos ataques dos “demónios do norte” e ao “voluntariado” das naus, ao terramoto e à “libertação” dos franceses; e a mais uma guerra civil e a mais uma gripe pandémica e a mais à fome de sempre e a mais outra guerra desnecessária.

Todo este vetusto esforço, todo este sofrimento de séculos, toda esta evolução a passo de pulga do homúnculo desgrenhado das cavernas ao belo civilizado que te devolve o sorriso quando olhas o espelho, teve como desígnio, nem planeado nem totalmente acidental: a tua pessoa. Esta alma específica que pela primeira e última vez caminha sobre o chão, a existência deste grão de poesia, único e insubstituível, que és tu!

Por isso lembra-te ó irmão, quando os gajos (sejam lá quem forem os gajos) te vierem vender o veneno da apatia e da descrença; quando te oferecerem o cálice do “nada vale a pena” e do “isto é mesmo assim”, quando te quiserem convencer que “a história acabou”, quando te quiserem converter ao catequismo do “para safado, safado e meio”; em suma, quando te tentarem seduzir para acreditares que não vales nada, que não és nada para além do que possuis, que a tua vontade e agência e existência não têm peso nem deixam marca; lembra-te da imensa cadeia de avós que te espreita do passado, desses avós famintos e ignorantes, fracos e sujeitos, que com um avo da tua potência não deixaram de mover o seu grão, com uma ínfima parcela das tuas possibilidades não baixaram os braços e não se deixaram convencer pelos gajos lá do tempo deles que mais valia viver virado para o próprio umbigo.

Lembra-te deles e empurra também tu o grão de areia que te calhou que, mais geração menos geração, a montanha move-se.