Filme negro, Óscar branco

A corrida aos Óscares de 2015, que fica esta noite decidida, tornou-se uma discussão sobre raça e indústria em que Hollywood, e sobretudo os membros da Academia, ficam mal no retrato. Mas há quem aproveite ainda para reflectir sobre o que significa hoje ser indie.

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Numa altura em que as mortes de jovens negros por polícias brancos no Missouri e em Staten Island e os tumultos em Ferguson enterraram definitivamente as ilusões de uma reconciliação ou apaziguamento raciais na América, a falta de diversidade na corrida aos prémios anuais da Academia de Hollywood tornou-se, talvez, o assunto mais falado desta edição dos Óscares. Com uma agravante: Selma, um filme biográfico sobre o líder dos direitos civis dos negros americanos, Martin Luther King, não recebeu mais do que duas nomeações, para melhor filme (juntamente com outros sete títulos) e melhor canção - apesar de corresponder ao que muitos consideram ser o estereótipo que a Academia adora recompensar: filme de época, com uma figura histórica de peso cheia de boas intenções (um reverendo pacifista, ao invés do radicalismo irado de Malcolm X, que também aparece, para reforçar o contraste) numa epopeia sobre progresso racial com final feliz, apesar de tudo, e os valores familiares salvaguardados (a viúva de King nunca voltou a casar, lê-se no epílogo).

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Numa altura em que as mortes de jovens negros por polícias brancos no Missouri e em Staten Island e os tumultos em Ferguson enterraram definitivamente as ilusões de uma reconciliação ou apaziguamento raciais na América, a falta de diversidade na corrida aos prémios anuais da Academia de Hollywood tornou-se, talvez, o assunto mais falado desta edição dos Óscares. Com uma agravante: Selma, um filme biográfico sobre o líder dos direitos civis dos negros americanos, Martin Luther King, não recebeu mais do que duas nomeações, para melhor filme (juntamente com outros sete títulos) e melhor canção - apesar de corresponder ao que muitos consideram ser o estereótipo que a Academia adora recompensar: filme de época, com uma figura histórica de peso cheia de boas intenções (um reverendo pacifista, ao invés do radicalismo irado de Malcolm X, que também aparece, para reforçar o contraste) numa epopeia sobre progresso racial com final feliz, apesar de tudo, e os valores familiares salvaguardados (a viúva de King nunca voltou a casar, lê-se no epílogo).

Dado que ainda existe um Presidente negro na Casa Branca, muitos perguntaram: o que aconteceu? Reginald Hudlin, produtor de Django Libertado, de Quentin Tarantino, escreveu um artigo de opinião na Hollywood Reporter sugerindo que os mesmos membros da Academia que em 2014 votaram em 12 Anos Escravo, de Steve McQueen, podem estar a sofrer de “fadiga racial” depois de terem eleito “um filme negro” no ano passado.

O realizador Spike Lee foi mais bombástico. “Quem pensar que este ano vai ser como o ano passado é atrasado mental”, declarou ao Daily Beast. “Muitos negros subiram ao palco no ano passado, com 12 Anos Escravo, o Steve [McQueen], a Lupita [Nyong’o], o Pharrell. Antes disso, tinha acontecido em 2002, quando a Halle Berry, o Denzel Washington e o Sidney Poitier ganharam Óscares. Estas coisas ocorrem em ciclos de dez anos. Por isso, não me ponho aos pulos quando acontece.”

Sasha Stone, fundadora e editora do blogue Awards Daily, baseado em Los Angeles e dedicado aos Óscares, disse ao New York Times que, para a Academia, premiar o filme de Steve McQueen tinha sido “como arrancar um dente”. “Creio que até hoje muitos membros continuam sem ter visto o filme e agora que ele ganhou [o Óscar de melhor filme], a Academia voltou rapidamente e em força àquilo que conhece, aos filmes que espelham a sua própria imagem.”

Não passará despercebido o facto de este tipo de raciocínio ser muito semelhante ao que se disse depois da eleição de Barack Obama: que a América branca só tinha votado num Presidente negro para se sentir bem consigo mesma e que iria demorar muito tempo até voltar a fazê-lo (Obama foi reeleito em 2012).

Respondendo a perguntas do PÚBLICO por email, Sasha Stone reforça que Selma não obteve mais nomeações “porque a Academia é dominada pelo voto do homem branco - especificamente o voto do homem branco de meia-idade”.

93% dos membros da Academia são brancos, 76% são homens e a média etária é de 63 anos. “Qualquer previsão sobre os Óscares tem de ter em conta os seus gostos e perspectivas. Eles não têm de justificar as suas escolhas, por isso são livres de fazerem o que lhes apetece na privacidade das suas casas. Nem sequer vêem todos os filmes. Só vêem o que querem ver. Acho que muitos nem viram Selma.”

Sharon Willis, professora na Universidade de Rochester que tem livros publicados sobre a questão racial no cinema e que prepara actualmente um ensaio comparando Django Libertado e 12 Anos Escravo, lembra que Selma só ficou pronto já no final de 2014, e que não beneficiou do “tipo de aparato promocional que outros filmes tiveram, nomeadamente os da companhia Weinstein”, o que terá contribuído para a sua presença tímida nas nomeações deste ano. Mas isso não quer dizer que outros factores - nomeadamente: raciais - não estejam em causa. Se alguma coisa a era Obama tem demonstrado em termos de diferença e preconceito racial é que as suas manifestações são quase sempre mais complexas e subtis do que parecem.

“Penso que o facto de Selma não ter tido mais nomeações teve a ver com a questão racial, mas de uma forma menos directa do que possamos pensar”, diz Sharon Willis. “O filme não narra a história familiar sobre o movimento dos direitos civis que os espectadores brancos querem ver. A história que tem sempre pessoas brancas a liderar o pelotão.”

Esse aspecto - a representação dos brancos como agentes de redenção em filmes de temática racial e a forma como a indústria e a Academia têm escolhido validar isso - tem sido um ponto sensível desde que Hattie McDaniel foi a primeira negra a receber o Óscar pelo seu papel de  escrava doméstica devota e feliz em E Tudo O Vento Levou, em 1940. Numa entrevista em 2012 com as actrizes negras de The Help / As Serviçais, um conhecido apresentador afro-americano, Tavis Smiley, confrontou-as com esse legado problemático. “Tenho um problema com o facto de continuarmos a celebrar Hattie McDaniel por ter feito de criada há tantos anos. Aqui estamos, todos estes anos depois, mas sinto uma ambivalência em relação às vossas distinções.” Octavia Spencer e Viola Davis interpretam criadas no filme e as duas receberam nomeações; Spencer ganhou o Óscar de melhor actriz secundária. Viola Davis respondeu: “Será que tenho sempre de fazer papéis nobres? Se é isso que tenho de fazer para a comunidade afro-americana celebrar o meu trabalho, a minha resposta é: estão a destruir-me enquanto artista.”

Qualquer actor ou artista negro tem de lidar com o fardo que é representar uma comunidade particular. Qualquer coisa que façam é sempre encarada como uma projecção de todo um grupo - tanto no seu interior como fora dele. Um gangster branco é um gangster (uma representação de todos os gangsters); um gangster negro é, sobretudo, um negro (uma representação de todos os negros).

Critério central
Como o comediante Chris Rock explicou recentemente numa entrevista televisiva, ser um famoso actor negro é diferente de ser um famoso actor branco. “Denzel Washington tem uma responsabilidade para com o seu povo que o Tom Cruise, o Liam Neeson e todos esses tipos não têm. Ninguém diz: ‘Ei, Tom Cruise, não deixes de ser branco! Nunca te esqueças da tua etnia! Volta e vem visitar o teu povo. O que estás a fazer em prol dos brancos, Tom Cruise?!”

Esse é a principal limitação com que personagens negras, femininas ou outras minorias têm de se confrontar, nota Sasha Stone. “Elas estão cristalizadas em requisitos politicamente correctos, o que faz com que só restem homens brancos para contar as histórias mais complexas. Eles têm um espectro expressivo muito mais vasto para interpretar heróis, vilões, velhos, ricos, tipos bonitos, tipos feios, monstros, mártires. Personagens negras e femininas têm de seguir uma lista do que podem e não podem dizer. Mas ninguém quer ver filmes sobre pessoas que são retratadas sempre de uma forma positiva. Isso é extremamente entediante. O filme As Serviçais foi bastante criticado por mostrar personagens negras no papel de criadas outra vez. Apesar de entender essa queixa, tudo o que aconteceu foi que as actrizes foram castigadas por se terem associado ao filme - forçadas a carregar o pesado fardo da vergonha. Claro que é importante desfazer estereótipos. Mas tornou-se tão opressivo que, para mim, isso agora faz parte do problema.”

Uma outra faceta desse problema é o facto de a representação da diversidade se ter tornado, nos últimos anos, o critério central a partir do qual toda a produção cultural americana é avaliada. A série de televisão Girls foi duramente criticada por não ter quaisquer personagens negras, enquanto Orange Is The New Black foi incensada pelo seu elenco multiracial. Isto cria os seus próprios problemas: que a televisão, o cinema e as outras artes se auto-imponham um sistema de quotas e que isso se torne uma fórmula de legitimação política e social, mais do que artística.

A unanimidade crítica em torno de Boyhood, um dos favoritos na corrida dos Óscares deste ano, foi contestada na revista The Atlantic e em blogues pelo facto de o filme, com a sua pretensão de retratar uma experiência universal, em que qualquer pessoa e família se podem reconhecer, ser demasiado branco. Nem diversidade racial nem racismo são abordados em Boyhood, apesar do seu arco temporal de 12 anos, apesar de ser também um fresco sobre a América, apesar de a sua acção ocorrer num estado do Sul e de fronteira com o México, adianta o artigo da Atlantic como quem diz: situações de tensão racial devem ser frequentes. E continua: o filme não representa o que é crescer na América sendo negro porque qualquer criança ou jovem negro traz consigo todo um historial de discriminação em função da sua cor de pele.

Outro aspecto que muitos observadores apontaram e criticaram: a única interaccão significativa entre as personagens centrais e brancas do filme e uma minoria étnica mostra um imigrante latino-americano a ser ajudado por elas - o jovem está a trabalhar nas obras da casa da família branca quando lhe dizem que ele é inteligente e devia estudar para ter uma vida melhor; anos mais tarde, a família e o jovem reencontram-se num restaurante onde ele é o gerente, e agradece o conselho que terá mudado a sua vida. Isso valeu a Boyhood acusações de racismo subtil e comparações com O Nascimento de Uma Nação, de Griffith.

Papéis "subservientes"
Ao comentar o facto de Selma ter recebido poucas nomeações para os Óscares, o britânico David Oyelowo, que interpreta Martin Luther King, disse que os actores negros têm sido mais distinguidos quando fazem papéis “subservientes, e não quando são líderes ou reis ou ocupam o centro da sua própria narrativa”. Historicamente, a indústria e a Academia têm preferido narrativas sobre negros contadas sob a perspectiva de personagens brancas, disse o actor. Oyelowo deu dois exemplos: Sidney Poitier devia ter recebido o Óscar por In the Heat of the Night (1967), filme em que é esbofeteado por um branco e retribui a agressão, em vez de Os Lírios do Campo (1963), onde ajuda um grupo de freiras católicas a construir uma capela. Denzel Washington ganhou o primeiro Óscar em 1990 por Glória, sobre um pelotão de soldados negros na Guerra Civil americana comandado por um coronel branco, ao invés de Malcolm X.

Sasha Stone corrobora: “Ser reconhecido para um Óscar implica fazer um filme negro com que os brancos se possam relacionar.” E onde é que o Óscar de melhor filme atribuído a 12 Anos Escravo no ano pasado se enquadra nessa teoria? “Esse filme não tinha uma narrativa intimidatória”, diz Sharon Willis. “É uma história sobre um homem que foi raptado e convertido em escravo mas que, no fim das contas, é salvo por brancos. Achei o filme e a sua recepção bastante perturbadores. Porque me pareceu completamente fascinado com trabalhos forçados e outras formas de abuso. Por vezes parecia um festival de crueldade e vitimização. Se pusermos os dois filmes, 12 Anos Escravo e Selma, lado a lado, um é um festival de vitimização dos negros, e o outro é uma história complexa sobre o triunfo da coragem e da estratégia política dos afro-americanos. E qual é que teve mais nomeações? Hollywood não sai lá muito bem no retrato.”

Selma tem sido amplamente criticado pela forma como o Presidente Lyndon B. Johnson é retratado no filme: como um antagonista, condescendente, quando não indiferente, às demandas de King. Johnson foi não só o Presidente que consagrou a Lei dos Direitos Civis de 1964, mas também a Lei do Direito de Voto de 1965, que pôs fim às barreiras que impediam os negros de votar no Sul segregacionista (é desse período e dessa legislação que Selma se ocupa). Historiadores e biógrafos presidenciais e colunistas políticos criticaram o filme pela alegada imprecisão com que trata Johnson e a sua relação com King. A realizadora, Ava duVernay, admitiu à Rolling Stone que inicialmente o filme era mais simpático para com Johnson, mas que ela não estava “interessada em fazer um filme com um salvador branco”.

A polémica é razão suficiente para os membros da Academia nem sequer quererem ver Selma, diz Sasha Stone. “Qualquer controvérsia ameaça eliminar um filme da corrida. Não deixa de ser irónico que um filme sobre direitos civis se tenha convertido numa discussão sobre a única personagem branca e masculina.”