Fusão boa

Free combina o formalismo da partitura coreográfica com interpretações expressivas numa fusão vertiginosa que os bailarinos dominaram muito bem

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Free Pat

O coreógrafo concentrou-se na ideia de que para dançar é preciso espaço e que poder atravessar esse espaço é como cruzar fronteiras: um indício de liberdade.

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O coreógrafo concentrou-se na ideia de que para dançar é preciso espaço e que poder atravessar esse espaço é como cruzar fronteiras: um indício de liberdade.

A peça resulta de um encontro intensivo de profissionais onde o coreógrafo observa a identidade dos bailarinos expressa em muito, mas não só, pela forma como se movimentam perante algumas premissas; é ao dirigir essa matéria que o coreógrafo reflecte a sua própria identidade, física e cultural.

Não é um método novo; mas é eficaz no propósito de encontro com o outro, indissociável de princípios de liderança democrática e fundado numa contemporaneidade cosmopolita  de fluxos e contágios descentralizados.

Em Free este método induziu uma coreografia que combina o formalismo da partitura nova (emergente do encontro), com expressivas interpretações individuais. Evidencia-se um vocabulário muito rico, não parco de referências à linguagem mais acrobática da dança contemporânea europeia que Maqoma aprendeu (onde reconhecemos Keersmaeker ou Shechter), mas também generoso em técnicas de repetição, enraizamento e fragmentação, que Maqoma detém no DNA informado por danças do seu continente, de transe e de catarse, ritual e social (e que Sanou ou Linyekula também incorporam).

Acompanhando a exploração exaustiva de níveis, do chão ao ar, os corpos correm, lançam-se em voos rasantes e rebolam; os corpos ora expandem subitamente em alongamentos arriscados, com uma determinação e precisão marciais, ora contraem, com ímpetos revoltosos ou torções relaxantes. Muitas voltas e muitos saltos, em diálogos, cânones ou uníssonos, são rematados com acentuações secas dos pés contra o chão.

Partes do corpo oscilam em ritmos rápidos: a cabeça  desvairada, um tremor de joelhos e peitos frenéticos alternam com oscilações pélvicas e sensuais.

Free é uma fusão boa e vertiginosa, que os bailarinos dominaram muito bem; incansáveis e indomáveis, mas sempre capazes de assegurar a coesão do colectivo e a atenção ao outro. Maqoma apresenta assim a dança como símbolo de liberdade de deslocação, de expressão e de comunicação.

Do método criativo resultam contudo algumas fragilidades: a coreografia segue uma estrutura de alternância - o grupo, a sua subdivisão, e solos - que é previsível e tem ligações notoriamente técnicas. Inferem situações teatrais que revelam as pessoas e as histórias dos corpos que dançam: teimosamente uma moça sacode-se presa de cada lado pelos pulsos, e um rapaz partilha um passado de abandono que explica o seu isolamento; mas a articulação destas cenas no trecho coreográfico é fugaz e ambígua. O mesmo acontece com as citações a danças convívio, porventura oriundas do Soweto, do Porto ou de Moscovo, que são engraçadas mas pouco consequentes.

Nesta mistura a música tem uma presença dominante. Sim, a música excita os afectos e empolga o vigor do movimento, mas impõe-se linearmente à dança e o espectro de referências desorienta: vamos de melodias arábicas a pulsações berberes, passando por dedilhados do corá, pela cítara indiana e uma guitarra eléctrica insolente.

Apesar de algumas fracturas e incongruências, Free é um espectáculo enérgico e contagiante que, após a estreia no renovado e animado Rivoli, poderão ver em Aveiro dia 20 de Janeiro.