Uma lixeira com vista para a lucidez

Inspirada pela história de uma esquizofrénica que viveu duas décadas num aterro sanitário, tauberbach é a coreografia em que Alain Platel questiona o lugar a partir do qual escolhemos relacionar-nos com o mundo. Em Guimarães e Lisboa, de 21 a 25.

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“O que mais me impressionou”, admite o coreógrafo, “foi a descoberta de que ela vivia na lixeira por decisão pessoal e acreditava poder levar uma vida autêntica naquele sítio. Depois, fiquei deslumbrado com o facto de usar palavras belíssimas para descrever a sua situação e o mundo. Há muito no olhar dela que é verdadeiramente inspirador. Gosto da sua forma extrema de encarar a vida e dos seus estranhos mecanismos de sobrevivência. Por isso, o filme não é tanto sobre uma mulher que vive num aterro, mas sobre um aterro que se torna uma metáfora da vida ou do caos no mundo”. Uma das expressões de Estamira no filme, recordada em palco pela actriz Elsie de Brauw – “Há frases que se perdem no documentário, mas quisemos colocá-las em palco por serem tão mágicas, belas e fortes”, diz Platel –, é a de que “a incivilização é o que é feio”. E essa ‘incivilização’ é identificada a partir de um posto de observação privilegiado: equilibrada em cima de todo o lixo produzido por uma sociedade entregue ao consumo e ao desperdício desenfreados. O lixo, a falta de civilidade, afinal, são aquilo que Estamira vê quando olha na direcção da cidade. Não quando olha para o sítio onde os seus pés se enterram.

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“O que mais me impressionou”, admite o coreógrafo, “foi a descoberta de que ela vivia na lixeira por decisão pessoal e acreditava poder levar uma vida autêntica naquele sítio. Depois, fiquei deslumbrado com o facto de usar palavras belíssimas para descrever a sua situação e o mundo. Há muito no olhar dela que é verdadeiramente inspirador. Gosto da sua forma extrema de encarar a vida e dos seus estranhos mecanismos de sobrevivência. Por isso, o filme não é tanto sobre uma mulher que vive num aterro, mas sobre um aterro que se torna uma metáfora da vida ou do caos no mundo”. Uma das expressões de Estamira no filme, recordada em palco pela actriz Elsie de Brauw – “Há frases que se perdem no documentário, mas quisemos colocá-las em palco por serem tão mágicas, belas e fortes”, diz Platel –, é a de que “a incivilização é o que é feio”. E essa ‘incivilização’ é identificada a partir de um posto de observação privilegiado: equilibrada em cima de todo o lixo produzido por uma sociedade entregue ao consumo e ao desperdício desenfreados. O lixo, a falta de civilidade, afinal, são aquilo que Estamira vê quando olha na direcção da cidade. Não quando olha para o sítio onde os seus pés se enterram.

Em parte, aquilo que interessa a Alain Platel nesta mulher é a assunção plena e carregada de uma lucidez desarmante – apesar de um discurso por vezes tão caótico quanto a aparência do cenário em que se encontra. Segundo o coreógrafo, este é um tema de discussão frequente na sua vida, o da faculdade permanente de se fazerem escolhas e tomarem decisões, recusando qualquer aprisionamento. “Quer tenhamos filhos, uma vida familiar a proteger ou algo assim, estas decisões estão sempre presentes e isso não significa que tenhamos de ser egoístas”, defende. Estamira é alguém que criou o seu pequeno mundo e vive de acordo com as suas próprias regras.

O coreógrafo não nega, assim, que Estamira é uma essencial fonte de inspiração para tauberbach, sobretudo para o trabalho de Elsie de Brauw. Foi, na verdade, a actriz a desbloquear o impasse criativo em que Platel se encontrava relativamente ao material do filme. “Ela usou-a como inspiração”, relata, “mas não queríamos copiá-la ou torná-la uma personagem muito nítida na performance. A Elsie usou também muito outros elementos da sua vida pessoal, da sua carreira como actriz e outros ainda que foram surgindo no estúdio durante os ensaios. Não se trata de uma tentativa de contar em palco a história de Estamira”. Aos poucos, aliás, Alain Platel foi percebendo que na sua criação conviviam duas peças soltas para as quais nunca encontrara o contexto ideal. Por um lado, Estamira; por outro, Tauber Bach, projecto de interpretação de música de Bach por um grupo de cantores surdos, realizado por Artur Zmijewski. tauberbach, dia 21 no Centro Cultural Vila Flor (Guimarães), de 23 a 25 no Teatro Maria Matos (Lisboa), é o choque entre os dois.

Em ambos os casos, Alain Platel vislumbra uma beleza límpida onde muitos podem apenas detectar uma loucura risível ou um esforço inglório. A armadilha, admite, é que a sua posição e a forma como a projecta em palco possam ser confundidas com “uma forma de arrogância” diante de um mundo cada vez mais lesto no desembainhar de acusações. “Mas sinto-me muito protegido porque as minhas peças são construídas a partir de uma troca muito intensa com os performers.” Tauber Bach, o projecto de Zmijewski, revela uma frágil e comovente leitura da música do compositor cantada por intérpretes que ultrapassam um embaraço: o de saber que as suas vozes, quando ‘tacteiam’ as melodias, provocam por vezes o riso em quem ouve. “Mas ao ouvir as gravações”, conta Platel, “fui percebendo a sua musicalidade. E foi curioso descobrir que os bailarinos começaram a juntar as suas vozes a partir de determinado momento, o que inicialmente parecia impossível”.

 

Bach para reconstruir

Bach não é novidade na obra de Alain Platel. Tem sido, aliás, rastilho frequente nas suas criações (Pitié! baseava-se na Paixão segundo São Mateus) – e não só. “Quanto mais trabalho e mais o tempo passa”, confessa, “tomo consciência de que a sua música é uma fonte de inspiração muito forte e uma fonte importante de consolo em momentos diferentes da minha vida”. Esse ascendente aparece agora, no entanto, reforçado pela recente revelação da biografia do compositor assinada por John Eliot Gardiner, onde o descobriu como “uma pessoa muito bruta e crua que passou tempos muito difíceis e que fazia música não pela graça divina mas por ser alguém que vivia muito intensamente”. “Não era nenhum santo”, diz Platel com alívio, como se finalmente pudesse descer Bach à terra e justificar a frequente convocatória para o seu palco. Também este maravilhamento não exclui – já o suspeitava – a crueza.

Tal como um músico, compara, quando se coloca de fora, assistindo às suas obras, Platel diz não se reconhecer frequentemente nas imagens estranhas que compõem o quadro final. Sabe quais foram as opções, lembra-se de sancionar e seleccionar cada trecho, mas releva sentir-se sistematicamente diante de um objecto “fascinante, enigmático e revelador”, para o qual não tem grandes explicações. A sua certeza é a de que, em cada nova obra, gosta de se questionar sobre onde tudo começa e a partir de que ruínas é possível recomeçar. Como Estamira. “Não apenas para fazermos performances”, sublinha. “Mas também para construirmos as nossas vidas.”