O corsário, o profeta, o apocalíptico Pasolini

Pier Paolo Pasolini fez da sua obra plural uma máquina de guerra contra o seu tempo, do qual fez um negro diagnóstico que chegou entretanto ao seu momento de actualidade. Olhar a época sob o signo e sob a condição de quem anunciou um “novo fascismo” é um exercício que deixou de ser visto como alucinação.

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Pasolini passou assim a ser lido na sua dimensão profética, aquela que ressalta tanto do seu último filme, Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), como dos artigos de intervenção que escreveu entre 1973 e 1975 (é assassinado na madrugada de 2 de Novembro de 1975), os Escritos Corsários, reunidos postumamente. O filme de Ferrara concentra, numa espécie de abreviatura de um juízo final, a figura de Pasolini no último dia da sua vida. Mas é um Pasolini que não tem nem a densidade teórica, ideológica e artística que lhe é hoje reconhecida, nem o furor político e pedagógico de um espírito “inactual”, no sentido nietzschiano do “intempestivo, do Unzeitgemäße, isto é, daquele que nunca coincide com o seu tempo. O Pasolini de Ferrara parece muitas vezes uma alucinação alegórica, como aquela encarnada por Carlo, a personagem do seu último e inacabado romance, Petróleo, publicado postumamente e rodeado de um grande escândalo. Também nesse romance se tratava de uma representação das mutações recentes da sociedade, com especial incidência na sociedade italiana, através de uma escrita alucinada, visionária e escatológica. Carlo, a certa altura, tem uma visão, e essa visão é a “Visão do Merda”. Uma espécie de revelação da verdadeira natureza da cidade e do mundo modernos, uma reconfiguração das relações sociais na sua totalidade. Carlo é um engenheiro de uma companhia de petróleos, mas desdobra-se em dois: há o Carlo que se comporta segundo os códigos da sua condição social e profissional e que frequenta os centros do poder, e há depois o outro Carlo que se entrega a todos os excessos, percorre os lugares mais promíscuos da cidade, delicia-se com o submundo dos ragazzi di vita, e vive os seus maiores momentos de glória quando serve mais de uma dezena de jovens camponeses com um fellatio a cada um. Não admira, pois, que se tenha dito desse romance, na imprensa italiana, que se tratava de “literatura escabrosa, no limite do insuportável”, ou que era “um verdadeiro repertório de obscenidades, um romance a abarrotar de caralhos”. No filme de Ferrara, é a alucinação do Carlo burguês e decente que comparece por momentos, indecifráveis certamente para os espectadores que não leram o livro.

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Pasolini passou assim a ser lido na sua dimensão profética, aquela que ressalta tanto do seu último filme, Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), como dos artigos de intervenção que escreveu entre 1973 e 1975 (é assassinado na madrugada de 2 de Novembro de 1975), os Escritos Corsários, reunidos postumamente. O filme de Ferrara concentra, numa espécie de abreviatura de um juízo final, a figura de Pasolini no último dia da sua vida. Mas é um Pasolini que não tem nem a densidade teórica, ideológica e artística que lhe é hoje reconhecida, nem o furor político e pedagógico de um espírito “inactual”, no sentido nietzschiano do “intempestivo, do Unzeitgemäße, isto é, daquele que nunca coincide com o seu tempo. O Pasolini de Ferrara parece muitas vezes uma alucinação alegórica, como aquela encarnada por Carlo, a personagem do seu último e inacabado romance, Petróleo, publicado postumamente e rodeado de um grande escândalo. Também nesse romance se tratava de uma representação das mutações recentes da sociedade, com especial incidência na sociedade italiana, através de uma escrita alucinada, visionária e escatológica. Carlo, a certa altura, tem uma visão, e essa visão é a “Visão do Merda”. Uma espécie de revelação da verdadeira natureza da cidade e do mundo modernos, uma reconfiguração das relações sociais na sua totalidade. Carlo é um engenheiro de uma companhia de petróleos, mas desdobra-se em dois: há o Carlo que se comporta segundo os códigos da sua condição social e profissional e que frequenta os centros do poder, e há depois o outro Carlo que se entrega a todos os excessos, percorre os lugares mais promíscuos da cidade, delicia-se com o submundo dos ragazzi di vita, e vive os seus maiores momentos de glória quando serve mais de uma dezena de jovens camponeses com um fellatio a cada um. Não admira, pois, que se tenha dito desse romance, na imprensa italiana, que se tratava de “literatura escabrosa, no limite do insuportável”, ou que era “um verdadeiro repertório de obscenidades, um romance a abarrotar de caralhos”. No filme de Ferrara, é a alucinação do Carlo burguês e decente que comparece por momentos, indecifráveis certamente para os espectadores que não leram o livro.

A actualidade de um Pasolini intempestivo (isto é, “inactual”) é alimentada sobretudo por este último Pasolini, o escritor corsário e o cineasta da experiência dos últimos limites. É aí que Pasolini anuncia, prediz, profetiza. E, como um profeta furioso, ele tem as suas visões e faz previsões de tipo apocalíptico, a partir de  diagnósticos do presente. Aliás, mais do que prognósticos ou do que previsões, trata-se de veredictos: porque esse futuro apocalíptico, vê-o ele já irrevogavelmente inscrito na catástrofe do presente. E essa catástrofe, designa-a e analisa-a Pasolini nos seus Escritos Corsários deste modo: enquanto emergência de um “novo fascismo”, um micro-fascismo que, graças aos novos meios de comunicação e de informação, pelo bombardeamento ideológico que coloniza as consciências e impõe modelos de obediência e de conformismo, tem o poder de penetrar onde os fascismos históricos não conseguiram; como manifestação de uma “mutação antropológica” que transformou totalmente a substância do poder e, através de uma nova cultura de massa e dos imperativos da sociedade de consumo, provocou um nivelamento totalitário do mundo, uma homologação que é tanto da linguagem como dos corpos; daí um terceiro nível da catástrofe a que Pasolini chamou “genocídio cultural”, o processo de homologação cultural que exterminou vastas zonas da sociedade italiana, fez com que todo o  espírito popular tivesse desaparecido, assimilado que foi ao modo de vida burguesa. Este genocídio encontra a sua representação alegórica no desaparecimentos dos pirilampos. Um dos artigos mais conhecidos do último ano de Pasolini é, com efeito, aquele que escreveu para o Corriere della Sera  sobre “o Vazio do Poder em Itália”, mas que ficou conhecido como “O artigo dos pirilampos”. Pode ler-se nesse artigo: “O verdadeiro confronto entre ‘os fascismos’ não pode pois ser ‘cronologicamente’ o do fascismo fascista com o fascismo democrata-cristão, mas o do fascismo fascista com o fascismo radicalmente novo que nasceu de ‘qualquer coisa’ que se passou há uma dezena de anos”. E a seguir, dá uma definição, “de carácter poético-literário" (como ele próprio escreve) desse fenómeno: “No início dos anos sessenta, por causa da poluição atmosférica e, sobretudo, por causa da poluição da água (...), os pirilampos começaram a desaparecer. Foi um fenómeno fulminante e fulgurante (...). A 'isso' que se deu há uma dezena de anos, chamaremos o desaparecimento dos pirilampos”.

 

Do fascismo ao "novo fascismo"

Esse momento de “genocídio cultural” praticado por um “novo fascismo” que já não propõe, como o fascismo histórico, “um modelo reaccionário e monumental”, mas é muito mais eficaz no modo de se apoderar das linguagens, dos gestos e corpos, corresponde a uma “assimilação total ao modo de vida da burguesia”, à instalação do sistema  moderno da ditadura consumista e capitalista, que tem o poder de subjugar e uniformizar os corpos, assim como de fossilizar a linguagem. Toda a obra de Pasolini é, então, como um projéctil lançado à figura da sua época. Ele próprio foi um permanente escândalo que era indecente apresentar, mas que também não era possível esconder (muitas vezes foi dito que era preciso anulá-lo; daí as especulações sobre as circunstâncias da sua morte, que nunca foram completamente esclarecidas). “Io sono uma forza del passato”: começa assim um dos seus poemas, recitado por Orson Wells em La Ricotta, sentado numa cadeira de realizador, para um jornalista com gestos de idiota e perguntas a condizer. No final da leitura, pergunta ao jornalista. “Entendeu alguma coisa?” O jornalista ainda tenta parafrasear o poema, mas é logo interrompido: “Você não entendeu nada porque é um homem médio. Um homem médio é um monstro, um perigoso delinquente”. Eis a visão apocalíptica de Pasolini: a burguesia: a classe média como o fim do mundo. Ou melhor, como o fim de um mundo, por força de um “genocídio cultural”.

O projecto político de Salò consiste em mostrar que o que caracteriza todo o poder é a “transformação dos corpos em coisas”. Daí, esta afirmação: “O sexo é hoje a satisfação de uma obrigação social e não um prazer contra as obrigações sociais [...]. O sexo em Salò é uma representação ou metáfora desta situação, aquela que vivemos nestes anos: o sexo como obrigação e fealdade”. A especificidade histórica da república de Salò assegura assim o carácter metafórico dessa figura da relação entre sexo e poder. Não podemos esquecer que poucos meses antes de morrer Pasolini tinha publicado, no Corriere della Sera, um texto em que abjurava a sua Trilogia da vida: O Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As Mil e Uma Noites (1974). Ainda que reafirmando a “sinceridade e a necessidade” de que nasceram esses seus filmes, e que o tinham levado à representação dos corpos e do seu símbolo culminante, o sexo, ele via-se agora na obrigação de repudiá-los, na medida em que todas as “justificações históricas e ideológicas a que tinha antes feito apelo eram agora caducas. Esses filmes, ao exaltarem a “inocência e a violência arcaica, sombria, vital dos corpos”, visavam apresentar uma realidade ainda não contaminada pela “subcultura dos mass-media”.

Tratava-se de opor a dimensão imemorial da cultura popular, em que riso e pobreza, eros e beleza, se opõem à cultura de messa emergente nos anos 60, fundada na uniformidade e na pulsão consumista. Entretanto, diz Pasolini, o curso das coisas infligiu um desmentido radical aos motivos que estão na base da sua Trilogia da Vida: “Agora tudo se alterou”, houve uma viragem da realidade da qual é preciso tirar consequências. Com efeito, diz ainda Pasolini, não é possível opor esses corpos não conspurcados pela “homologação” generalizada à trivialização da realidade através dos circuitos do consumo e da indústria cultural que fizeram dos corpos mercadorias como todas as outras. A abjuração da Trilogia antecipa, portanto, a radicalização do pensamento, da crítica e da escolha das armas de combate que vai desembocar na aposta política e estética de Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975). Alguns meses antes do artigo publicado no Corriere della Sera, Pasolini tinha respondido ao amigo Sergio Moravia: “O consumismo consiste num verdadeiro cataclismo antropológico: e eu vivo, existencialmente, esse cataclismo que, pelo menos por agora, é pura degradação; vivo-o nos meus dias, nas formas da minha existência, no meu corpo. [...]. É de uma experiência existencial, directa, concreta, dramática que nascem, em suma, os meus discurso ideológicos”.

 

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