Infâmia premonitória

Elegantemente escrita, esta sóbria novela de Zweig pode ser lida como um presságio do destino do seu autor

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Stefan Zweig faz de Mendel a personificação do destino trágico do judeu errante, e do fim de uma certa Europa

Escrita em 1929 pelo austríaco Stefan Zweig (1881-1942), e publicada em jeito de folhetim no jornal diário vienense Neue Freie Presse, esta breve novela narra a história de um “homem lendário”, Jakob Mendel, conhecido como o “Mendel dos livros”, um excêntrico alfarrabista, judeu ortodoxo galiciano, que durante mais de 30 anos se sentou à mesa de um café de Viena, o Café Glück. Com uma prodigiosa memória enciclopédica, este emigrante judeu russo, que por aparente desleixo, e também falta de necessidade, nunca se naturalizara austríaco (atravessara a fronteira ainda jovem para não cumprir o serviço militar), mantinha uma clientela culta (feita de coleccionadores, intelectuais e académicos) que requeria os seus serviços e o seu saber imprescindível. Mas em 1915, já em plena Primeira Guerra Mundial, este homem que “se sentava sempre a uma mesinha quadrada coberta por um tampo de mármore de um sujo acinzentado, que estava sempre repleto de livros e escritos”, é injustamente acusado de colaborar com os inimigos do Império austro-húngaro e levado para um campo de concentração. A Polícia encontrara cartas remetidas e assinadas por ele a fornecedores de livros em diferentes pontos da Europa — Mendel, que há anos vivia absorto e mergulhado em livros, não se apercebera que o mundo entrara em guerra e continuava a tentar manter correspondência com outros alfarrabistas europeus. “À excepção dos livros, este homem estranho não sabia nada do mundo; pois todos os fenómenos da existência começavam a tornar-se realidade para ele só quando estes se tinham vertido em letras, quando se tinham reunido num livro.”

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Escrita em 1929 pelo austríaco Stefan Zweig (1881-1942), e publicada em jeito de folhetim no jornal diário vienense Neue Freie Presse, esta breve novela narra a história de um “homem lendário”, Jakob Mendel, conhecido como o “Mendel dos livros”, um excêntrico alfarrabista, judeu ortodoxo galiciano, que durante mais de 30 anos se sentou à mesa de um café de Viena, o Café Glück. Com uma prodigiosa memória enciclopédica, este emigrante judeu russo, que por aparente desleixo, e também falta de necessidade, nunca se naturalizara austríaco (atravessara a fronteira ainda jovem para não cumprir o serviço militar), mantinha uma clientela culta (feita de coleccionadores, intelectuais e académicos) que requeria os seus serviços e o seu saber imprescindível. Mas em 1915, já em plena Primeira Guerra Mundial, este homem que “se sentava sempre a uma mesinha quadrada coberta por um tampo de mármore de um sujo acinzentado, que estava sempre repleto de livros e escritos”, é injustamente acusado de colaborar com os inimigos do Império austro-húngaro e levado para um campo de concentração. A Polícia encontrara cartas remetidas e assinadas por ele a fornecedores de livros em diferentes pontos da Europa — Mendel, que há anos vivia absorto e mergulhado em livros, não se apercebera que o mundo entrara em guerra e continuava a tentar manter correspondência com outros alfarrabistas europeus. “À excepção dos livros, este homem estranho não sabia nada do mundo; pois todos os fenómenos da existência começavam a tornar-se realidade para ele só quando estes se tinham vertido em letras, quando se tinham reunido num livro.”

A história, contada por um narrador não identificado, mas que pelos poucos traços deixados se pode inferir ser o próprio Zweig, dá-nos conta do fim de uma época histórica, de um sentimento nostálgico por uma Europa plural e tolerante que ruiu com o primeiro conflito mundial. Quando Mendel regressa destroçado do campo de concentração, com a memória e o saber reduzidos a escombros, tudo tinha mudado. “Mendel já não era Mendel, tal como o mundo já não era o mundo.” O próprio Café Glück mudara de dono, agora nas mãos de um homem que fizera fortuna à conta da fome trazida pela guerra, e onde já não havia lugar para o pobre Mendel e para os seus livros; aquele café, símbolo de uma Viena judaica e culta — “onde passara mais de trinta anos, isto é toda a parte consciente da sua vida, sentado unicamente ali àquela mesa quadrada, lendo, comparando, calculando, num estado de sonho continuo, interrompido somente pelo sono” —, acabara por expulsar o velho Mendel, como se escorraçasse um cão tinhoso, acusando-o de comer “dois pãezinhos” sem os pagar.

A remodelação do café, para um espaço em que a cultura cede lugar ao lucro, em que o saber perde em favor do dinheiro, é na novela uma das metáforas mais fortes para a mudança de um tempo histórico. Recorrendo à figura de um judeu oriental para personagem principal da sua novela, Stefan Zweig, talvez de maneira inconsciente, aborda algumas das terríveis condições dos judeus galicianos numa Viena em mudança — que, como nota o tradutor Álvaro Gonçalves no texto de apresentação do livro, nos remete para o extraordinário livro de ensaios de Joseph Roth, Judeus Errantes (Sistema Solar, 2013). Ao mesmo tempo, Mendel dos Livros pode ser lido como uma espécie de parábola do povo judaico e de um destino trágico que parecia já começar a desenhar-se nessa Viena dos anos 1920, onde a identidade judaica vienense, assente sobretudo na cultura — mais do que no dinheiro, como Zweig aliás explica detalhadamente na sua autobiografia, O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu (Assírio & Alvim, 2014) — começa a ser forçada a eclipsar-se, acabando por ser destruída uma ou duas décadas mais tarde.

Estranhamente, esta novela, elegantemente escrita, pode ser lida como uma infame premonição do que haveria de acontecer ao seu autor pouco menos de uma década depois: Zweig, cidadão vienense, cosmopolita, cuja vida foi dedicada aos livros e a escrever uma “obra literária europeia com características universais”, vê-se forçado a abandonar o seu país e a sua língua, devido à sua condição judaica, e acaba por cometer suicídio no Brasil.