Soldado da I Guerra Mundial explica como a bactéria da disenteria ganhou resistências

Analisado o genoma de bactérias Shigella flexneri recolhidas em 1915. As condições nas trincheiras eram tão favoráveis à propagação da disenteria como as que existem hoje nos países em desenvolvimento.

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A bactéria Shigella (a laranja) origina a inflamação dos intestinos, que pode resultar em sangramento, desidratação e, por vezes, na morte Dave Goulding/Genome Research Limited

Mas a recolha de uma amostra de bactérias que, tudo aponta, foi feita no soldado inglês pode ajudar agora a compreender esta doença, que ainda não tem vacina. Uma equipa analisou o genoma da Shigella flexneri de uma amostra de 1915 e concluiu que esta bactéria que causa disenteria já era resistente a duas substâncias antibióticas — incluindo a penicilina, que só seria descoberta pela ciência em 1928.

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Mas a recolha de uma amostra de bactérias que, tudo aponta, foi feita no soldado inglês pode ajudar agora a compreender esta doença, que ainda não tem vacina. Uma equipa analisou o genoma da Shigella flexneri de uma amostra de 1915 e concluiu que esta bactéria que causa disenteria já era resistente a duas substâncias antibióticas — incluindo a penicilina, que só seria descoberta pela ciência em 1928.

Estas resistências ajudam a explicar como a bactéria se adaptou tão bem desde então, defendem os autores num artigo científico publicado recentemente na revista The Lancet, numa edição dedicada por inteiro à I Guerra Mundial.

Há vários microrganismos que causam disenteria, como uma espécie de amiba e algumas bactérias. A infecção causada por estes agentes patogénicos nos intestinos acaba por desencadear uma inflamação que pode resultar em sangramento, desidratação e, nalguns casos, na morte. Não há vacina contra aqueles microrganismos.

Os países em desenvolvimento são os mais afectados pela disenteria. A bactéria Shigella flexneri, que causa uma proporção importante desta doença, está presente nestas regiões devido à existência de condições semelhantes às das trincheiras da I Guerra Mundial: falta de higiene, predisposição das pessoas para doenças devido à má nutrição e um mau diagnóstico dos agentes patogénicos.

A equipa de Nicholas Thomson, do Instituto Wellcome Trust Sanger, no Reino Unido, foi investigar a história genética da Shigella flexneri. E analisou amostras de 1915 (cuja estirpe se chama agora NCTC1), além de amostras isoladas num doente japonês em 1954, outras recolhidas em Pequim em 1984 e ainda de uma outra estirpe epidémica de 2002 obtida também na China.

Os cientistas explicam a história da estirpe mais antiga. “A amostra foi isolada em 1915 num caso inicial de disenteria reportado nas forças britânicas na frente ocidental na I Guerra Mundial”, segundo o artigo na The Lancet. Esta amostra foi a primeira a chegar à Colecção Nacional de Culturas-Tipo do Reino Unido, a mais colecção de bactérias patogénicas mais antiga do mundo. 

“Durante a I Guerra Mundial, as estirpes de disenteria vindas de todo o mundo foram reunidas, facilitando a produção de uma colecção com as estirpes mais representativas”, lê-se no artigo.

Os autores explicam também que os microbiólogos da altura defendiam que se compreenderia mais rapidamente estes agentes patogénicos, se houvesse uma colecção centralizada. Quase um século depois, estas colecções podem agora ser analisadas por uma tecnologia que os cientistas da altura nem sequer imaginavam.

Novas resistências
A análise e a comparação genómica mostraram que aquela estirpe de 1915 já tinha resistência contra os antibióticos penicilina e eritromicina (o primeiro revolucionou a luta contra as doenças de origem bacteriana, depois de ter sido descoberto por Alexander Fleming). Desde então, esta estirpe conservou 3982 dos 4058 genes, cerca de 98%. Nos 2% de informação genética nova das bactérias de hoje estão genes importantes para a resistência a outros antibióticos, para o aumento da virulência e genes que poderão ajudar a bactéria a escapar ao sistema imunitário humano.

Os cientistas defendem que as resistências aos antibióticos que a bactéria de 1915 já tinha terão potenciado o desenvolvimento rápido de novas resistências. “Ao sequenciar a estirpe NCTC1, mostrámos o pano de fundo histórico para a evolução da Shigella flexneri, que nos permitiu reflectir sobre os factores que contribuíram para a sua disseminação desde a I Guerra Mundial”, explicam os autores, defendendo a “necessidade urgente” de uma vacina contra a Shigella flexneri.

A Colecção Nacional de Culturas-Tipo do Reino Unido tinha dado o nome de Cable a esta estirpe. E foi por aqui que os cientistas conseguiram chegar, primeiro ao hospital onde as amostras tinham sido recolhidas — o Hospital Militar n.º 14 instalado no Grand Hotel de Wimereux, na costa, no Norte de França —, e depois ao soldado Ernest Cable, que combateu na frente ocidental e morreu com 28 anos naquele hospital.

“Muitas das amostras com que trabalhamos na genómica de bactérias têm histórias que nunca conheceremos”, diz Kate Baker, primeira autora do artigo, citada num comunicado do Instituto Wellcome Trust Sanger. “Ao encontrarmos Ernest Cable e ao ficarmos a conhecer a sua história, tivemos a oportunidade de homenagear aqueles que lutaram na I Guerra Mundial e de mostrar o peso das doenças infecciosas naquele tempo.”

Notícia corrigida às 12h36: quem descobriu a penicilina foi Alexander Fleming e não Ian Fleming como estava escrito.