Morte e ressurreição do autor dramático

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O Estranho Corpo da Obra Paulo Nuno Silva

O remédio escolhido foi, neste caso, narrar o próprio processo de invenção da realidade cénica, que por sua vez fala de vidas lá fora, que de imediato são absorvidas pelos corpos dos actores cá dentro. O teatro serve assim para apresentar a realidade, ao invés de se limitar a representá-la, conseguindo, mais do que transmitir uma realidade, fazer parte dela. A escrita, os ensaios, as angústias dos criadores, o tiroteio numa escola, o fim do mundo as we know it e a estreia de um espectáculo coincidem, deste modo, no tempo e no espaço, como se o ponto aleph de Borges, um lugar onde tudo está, fosse finalmente encontrado nesta sala de teatro.

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O remédio escolhido foi, neste caso, narrar o próprio processo de invenção da realidade cénica, que por sua vez fala de vidas lá fora, que de imediato são absorvidas pelos corpos dos actores cá dentro. O teatro serve assim para apresentar a realidade, ao invés de se limitar a representá-la, conseguindo, mais do que transmitir uma realidade, fazer parte dela. A escrita, os ensaios, as angústias dos criadores, o tiroteio numa escola, o fim do mundo as we know it e a estreia de um espectáculo coincidem, deste modo, no tempo e no espaço, como se o ponto aleph de Borges, um lugar onde tudo está, fosse finalmente encontrado nesta sala de teatro.

As narrativas são feitas por actores, incorporando falas desenhadas por Crimp com forma de vozes de carne e sangue e osso — personagens, podemos dizer. No primeiro andamento do espectáculo, Paulo Calatré, Carlos Alberto Augusto, Mariana Reis e Isabel Lopes dizem à vez cada um dos Quatro Pensamentos, refazendo com o corpo os movimentos e a gestualidade que parecem naturalmente associados ao que pensam, e construindo outros pensamentos, ocultos, para alicerçar os explicitados.

Parecem momentos de confissão, no palco vazio, perante um público cúmplice. Isabel Lopes é mais forte, pela forma como preenche as entrelinhas de dados implícitos, mas os restantes actores levam a barca a bom porto. No segundo andamento, o texto de Crimp materializa um grupo de actores ou de guionistas (ou de investigadores policiais) refazendo os passos virtuais de um tiroteio. Paulo Calatré refaz com precisão um narrador que inventa, no que é ao mesmo tempo um exercício de estilo, de contradição e repetição, de Crimp. No terceiro e último, três figuras enjauladas repetem o que vêem ou ouvem dizer ou imaginam (em três episódios) sobre um mundo que ameaça, ou reforça, visto por outro lado, o comprazimento da classe média. A metáfora cenográfica sublinha a ideia, encerrando com espectacularidade uma montagem de outro modo discreta.

O Estranho Corpo da Obra foi mostrado no TNSJ a seguir a Definitivamente as Bahamas, outra peça de Crimp, de 1986, estreada este ano na Sala-Estúdio do Teatro da Rainha. Esta visita de duas encenações de Fernando Mora Ramos ao Porto foi uma oportunidade rara de ver várias facetas da obra deste importante dramaturgo em tão pouco tempo. Como bónus, além das óptimas traduções de Isabel Lopes, pudemos escutar versões de Contra a Parede e Menos Emergências assinadas por Paulo Eduardo Carvalho, de saudosa memória.

A presença de Crimp nos palcos portugueses — e a ideia de que um autor dramático, mesmo contemporâneo, partilha a sua visão de mundo ainda através de personagens — tornou-se familiar graças a estas pessoas.