Não podemos viver sem D’Angelo

Black Messiah é um álbum monumental, mas como se entrevisto por detrás de uma névoa – discreto, de uma riqueza soberba nos arranjos, amparado numa voz sublime, tudo sem alarido.

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Logo em seguida, escreveria que “muitos pensarão que se trata de religião”. Mas não é, afinal, de uma pomposa auto-proclamação que se trata. Black Messiah não corresponde a um delírio narcisista, daqueles em que Kanye West é doutorado e nos quais chafurda com uma arrogância que só é caucionada pelos frequentes impressionantes feitos artísticos. “Para mim, o título é sobre todos nós. Sobre o mundo. É uma ideia a que todos podemos aspirar”, acrescentava D’Angelo no tal panfleto distribuído aos presentes no Dream Hotel, em Nova Iorque.

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Logo em seguida, escreveria que “muitos pensarão que se trata de religião”. Mas não é, afinal, de uma pomposa auto-proclamação que se trata. Black Messiah não corresponde a um delírio narcisista, daqueles em que Kanye West é doutorado e nos quais chafurda com uma arrogância que só é caucionada pelos frequentes impressionantes feitos artísticos. “Para mim, o título é sobre todos nós. Sobre o mundo. É uma ideia a que todos podemos aspirar”, acrescentava D’Angelo no tal panfleto distribuído aos presentes no Dream Hotel, em Nova Iorque.

“É sobre as pessoas revoltosas em Ferguson e no Egipto e no Occupy Wall Street e em todos os lugares onde uma comunidade esteja farta e decida que é altura de mudar”, diz ainda. É relevante, por todas as razões, que D’Angelo assim se explique. Porque Black Messiah – podendo carregar ainda a alusão à longa espera pelo sucessor do magnífico Voodoo (2000), com o mundo a salivar em barda por qualquer novo esboço de tema desde então – trá-lo de volta depois dessa demorada ausência sem precisar de substituir o silêncio pela verborreia, ou o recolhimento pelo alarde.

Há quase uma provocação e um anúncio do que aí vem assim que Black Messiah arranca e se ouve Ain’t that Easy. À medida que o tema avança, num andamento que parece milimetricamente controlado para funcionar como infalível manobra de sedução, a voz de D’Angelo (tratada por camadas ao jeito dos Outkast) parece um freio que sustém o andamento, puxando o tempo para trás, impedindo que acelere. Mais tarde, em Till It’s Done (Tutu), levará mais longe este jogo elástico entre ritmo, harmonia e melodia, desencontrando subtilmente os registos. Mas depois de Ain’t that Easy, quando se inicia o borbulhar funk de 1000 deaths, o primeiro dos muitos casos em que D’Angelo não esconde o seu fascínio por Prince, é essa construção musical perfeita (sem estar colocada ao serviço do massajar do ego) que se ouve.

A partir do genial Sugah Daddy, numa sonoridade que recusa de forma simples e desarmante a obrigação da soul hoje se jogar no tabuleiro do r&b plástico, esculpido a computador, Black Messiah soa cada vez mais a um álbum de soul feito como se fosse um disco de jazz – lembrando, a espaços, o quase invisível mas sumarento Rainbow Children, de Prince – com um piano que podia pertencer às mãos de Duke Ellington e uma secção de sopros que acorda de vez em quando como se tivesse hibernado por altura de 3 Feet High and Rising, dos De La Soul.

Black Messiah é um álbum monumental a cada momento, mas como se entrevisto por detrás de uma névoa – discreto, de uma riqueza soberba nos arranjos, amparado numa voz sublime, tudo sem alarido. Depois de Voodoo, D’Angelo foi levantado em ombros como o arauto da neo-soul e desapareceu de cena, levando a crer que o mundo podia viver sem ele. Black Messiah, disco feito como não tendo mesmo nada a provar, lembra-nos que não, que esta música nos é demasiado vital.