Nas cadeias nascem leitões, faz-se vinho, azeite e mel

Nos trabalhos ao ar livre, os reclusos estão um pouco mais próximos da liberdade.

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É quase hora de almoço quando chegamos à casa de António Vidinhas e António Carneiro. O lume está pronto cá fora e os dois homens preparam-se para pôr as febras em cima das brasas. A nossa chegada interrompe-os, mas eles garantem que não tem importância. Não recebem assim tantas visitas ali e além disso vimos acompanhados por José António Silveira, director do Estabelecimento Prisional (EP) de Izeda, Trás-os-Montes, e pelo chefe Cepeda, o responsável pelos guardas.

A casa de Vidinhas e Carneiro fica a quatro quilómetros do EP, os dois homens estão em regime aberto, encarregues de tomar conta da pocilga — não têm telemóvel (o regulamento não permite), mas têm uma velha bicicleta para irem até à prisão quando precisam.

Vidinhas leva-nos a ver as porcas e os leitões. Cada uma tem um espaço separado e os leitões brincam na terra, junto às enormes mães, ignorando a sorte que os espera muito em breve. Vidinhas está aqui, a tratar dos animais, há já 14 anos. Conhece-os como ninguém e percebe-se que adora o que faz.

Antes havia outro recluso a viver na casa, mas entretanto saiu em liberdade, e os responsáveis da prisão resolveram perguntar a António Carneiro, pescador da Póvoa mais habituado aos peixes do que aos porcos, se estava disposto a ir viver para ali. Ele disse que sim, gosta do sossego, e sempre é mais parecido com estar em liberdade. “Somos obrigados a cumprir a pena, mas aqui sempre é melhor, não temos guarda, não temos fecho, nada. Estamos bem. Temos televisão, mas às 9h30, 10h da noite já estamos deitados. E às 7 da manhã já estamos a pé.”

Levam-nos a ver a casa. Os quartos arrumados, as camas feitas, a roupa pendurada em cabides. Na sala uma lareira porque “de Inverno isto é um horror, chega a fazer 7 ou 8 graus abaixo de zero”. A televisão está ligada e ouve-se o noticiário. Abrem o frigorífico, onde guardam a comida que lhes é trazida por um funcionário do EP e que eles cozinham todos os dias.

Vidinhas descreve o quotidiano. “De manhã, quando nos levantamos, tomamos o pequeno-almoço. Botamos de comer aos animais, vemos se estão bem ou não. Depois é ver se há porcas para trazer para aqui e ficarem isoladas se forem ter filhos. É ver se os leitões estão bem, fazer a limpeza às barracas, moer cereais quando é preciso, e pouco mais… botar água, lavar as pias, enchê-las para os animais terem sempre água limpa.”

Abre uma porta para nos mostrar um porco que não foi vendido (os animais aqui são de raça bísara e são todos vendidos para a Associação Nacional de Criadores de Suínos de Raça Bísara) e que ficou a criar ali. “Os animais foram sempre a minha vida. Em casa também tinha e cuidava deles, mas aqui ganhei mais experiência. Se algum está doente, entro em contacto com o veterinário, claro, mas sou eu quem dá as injecções.”

Há um cão que salta, brincalhão, junto às nossas pernas, e que brinca com os gatos pequeninos. À frente da casa há uma horta, e um pouco mais longe um terreno onde, conta o director do EP, a ideia é vir a criar faisões. No Natal, vai provavelmente fazer muito frio, mas este ano nenhum dos dois homens vai a casa (já estão ambos abrangidos pelas saídas precárias, que lhes permitem visitas regulares à família). Estão muito longe dos outros reclusos, por isso é muito importante que se entendam. “Se estivermos dois que não se dêem bem, já não dá para o trabalho”, resume Vidinhas.

Mas ambos sabem que estão numa situação de certa forma privilegiada. “Lá dentro era impossível termos as garantias que temos aqui”, diz. “Aqui não temos chave à porta. Porque se for preciso pormo-nos a pé às dez ou onze da noite para ver de alguma porca, temos de sair. Quem souber levar a vida em condições tem as regalias. Saber levar esta vida conta muito.”

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António Vidinhas toma conta da pocilga, com uma produção anual de 400 leitões. Vive em regime aberto numa casa fora do edifício principal do EP

Vidinhas e Carneiro são dois dos 288 reclusos que nos estabelecimentos prisionais portugueses trabalham em explorações agrícolas. A Revista 2 visitou três destes EP: Izeda (Trás-os-Montes), Santa Cruz do Bispo (Matosinhos) e Pinheiro da Cruz (Grândola), com diferentes produções agrícolas. Trabalho não falta — basta dizer, por exemplo, que Izeda tem 154 hectares de terrenos — e os directores gostariam de ter mais reclusos em condições de trabalhar no exterior. O problema é que só podem usar reclusos que beneficiem do Regime Aberto no Interior (RAI, decidido em função do comportamento e do tempo de pena cumprido) e estes são ainda uma percentagem pequena do total da população prisional.

Izeda fica no final de uma estrada e ergue-se no horizonte de quem se aproxima de carro não tanto como uma edifício de prisão mas mais como um colégio interno, com torre de igreja e tudo. E, na verdade, este estabelecimento começou por ser aquilo a que antigamente se chamava uma “casa de correcção”, onde os menores que cometiam pequenos crimes — os “corrécios” — eram colocados. O guarda Cepeda, que nasceu na região, lembra-se muito bem de ouvir dizer que quem não se portasse bem “ia para os corrécios”.

O facto de o edifício ser semelhante a um colégio ainda hoje traz preocupações à direcção. Não era suposto que das janelas das celas os reclusos pudessem ver quem entra e sai pelo portão principal, mas não há muito a fazer quanto a isso. O nosso carro aproxima-se e à direita vemos um campo de futebol cheio de… vacas. “Costumamos pô-las ali a pastar”, explica o director, “porque estão num espaço controlado e porque vão cortando a relva do campo.” Parece, visto daqui, um jogo de futebol com jogadores pouco motivados para correr.

Mas há mais coisas que não parecem encaixar na imagem que se tem de uma prisão. O director leva-nos a visitar a vacaria e a zona onde vivem os presos que estão em regime aberto. É uma fileira de casas, com quartos com vários beliches, os sapatos todos arrumados lá fora, as camas feitas. Um dos reclusos está a cortar vegetais na cozinha para fazer a refeição para o grupo. Outros trabalham no exterior. Ali ao pé galopam quatro cavalos brancos. Um preso monta num dos animais e galopa à nossa frente, o vento a bater-lhe no rosto. É este homem que está encarregue de tomar conta dos cavalos que o EP recebeu, mas quando ele vai a casa em precária a tarefa passa para outro, Avelino Marques dos Santos, que vamos conhecer um pouco mais longe, no campo das nogueiras.

“Estou cá fora há três ou quatro meses”, conta-nos Avelino, apanhando as nozes que caem no chão enquanto outro recluso, empoleirado em cima de uma árvore, abana os ramos, e a cadela Micas corre de um lado para o outro. “Faço um pouco de tudo, apanhar a noz, olhar pelos animais, cortar milho. [Estar fora] dá mais liberdade, temos a possibilidade de ficarmos fora do perímetro da cadeia, está-se melhor. Fiquei a saber aqui que há nozes fêmea e macho. Aprende-se muita coisa”, diz. Mas o que o tem entusiasmado mais são os cavalos. Abre um sorriso. “Até do cavalo abaixo já caí, são experiências que lá dentro nunca iria ter.”

José António Silveira, o director, tem pena que a nossa visita aconteça já no fim da época da noz e antes de se começar a campanha da azeitona. “A maior parte dos nossos terrenos são olival e conseguimos uma produção anual de azeite de 6 a 8 mil litros, que vendemos quase todo a funcionários dos nossos serviços.” Na pocilga onde trabalham Vidinhas e Carneiro, há entre 60 e 70 porcas, com uma produção anual de 400 leitões. Na vacaria, 30 vacas de raça mirandesa e 19 vitelos, actualmente — todos os animais com escoamento garantido. Quanto às nogueiras, a produção este ano foi de duas toneladas de nozes.

“Toda a actividade agrícola esteve parada uns sete anos”, explica o director. “Ficou tudo ao abandono.” Com a ajuda do engenheiro agrónomo António Padrão, desde 1996 que se foram recuperando os campos — com a dificuldade acrescida de que os 150 hectares (dos quais apenas nove são de pinhal, cinco de mato, e 25 de olival) estão espalhados por muitas parcelas, o que torna mais complicado levar para trabalho no exterior grandes números de reclusos. Mas a aposta é forte e em breve será feito um investimento de 200 mil euros, que permitirá ter novas maternidades para as porcas e novas alfaias e estufas.

Falta-nos ainda conhecer o rebanho de 262 ovelhas. Vamos no jipe até ao local onde estão o senhor Luís, que é o pastor civil que anda com os animais, e Pedro Nuno Crista, o recluso que o acompanha. Apoiado num pau, de palhinha ao canto da boca, Crista conta que está neste trabalho há um mês e meio mas que já estava habituado a lidar com animais. “Aqui é outra liberdade”, diz. E não se atrapalha. Ainda há pouco teve que trazer de volta do campo uma ovelha que tinha acabado de parir. “Já é a terceira vez que faço isso, não custa nada.”

“Neste momento temos 15 homens a trabalhar no exterior”, relata o director do EP. “Costumo dizer-lhes, quando vêm cá para fora, para aproveitarem bem porque é um primeiro passo para a liberdade definitiva. Enquanto no interior têm sempre alguém a controlar-lhes os passos, cá fora podem gerir o seu tempo, não têm guardas em permanência e, para quem está privado da liberdade, isso é uma enorme benesse.”

Claro que se “poderia atingir outros resultados em termos de produtividade se houvesse mais recursos”, salienta José António Silveira. “Se tivéssemos mais reclusos a beneficiar de medidas de flexibilização, poderíamos colocar mais a trabalhar neste tipo de actividade.” E os riscos de fuga? “Felizmente são situações pontuais, que raramente acontecem. Os reclusos valorizam muito esta oportunidade que lhes é dada. Temos de apostar neles, não podemos ficar com medo de que as coisas não corram bem, porque há muita gente com competências que só necessita que lhe dêem um caminho para poderem ser úteis no futuro.”

É esse também o discurso de Licínio Lima, subdirector da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. “As nossas prisões não são cárceres, são centros de reabilitação e reinserção”, afirma. “O nosso maior receio é que um indivíduo que é libertado continue preso a estigmas e modelos de vida.”

O que a direcção-geral tem vindo a fazer nos últimos tempos é recuperar as actividades económicas “que no passado foram uma imagem de marca dos EP e que foram morrendo”. O objectivo é “o aproveitamento económico dos equipamentos e de todo o potencial de patrimónios que os serviços têm” e, ao mesmo tempo, “tentar que os reclusos estejam ocupados o máximo de tempo possível e que recebam algum dinheiro, o que lhes dá maior autonomia e evita negociatas dentro do estabelecimento”. Há outro ponto muito importante: “Quanto mais ocupados os reclusos estão, menor é o consumo de medicação” como antidepressivos.

Neste momento, segundo dados do 1.º semestre do ano, a população prisional é de 13.760 indivíduos (número de 1 de Julho), dos quais, 3599 estão a trabalhar em actividades organizadas pelos EP e 1202 em trabalhos que resultam da colaboração com entidades externas. Mas muitos destes trabalhos são de manutenção do próprio estabelecimento e não implicam ir para o exterior.

O caso das actividades agrícolas é particular e por isso envolve números ainda baixos: 189 indivíduos nos produtos hortícolas (com receitas de 45 mil euros em 2013), 66 em viticultura (142 mil euros) e olivicultura (perto de 29 mil euros), 29 em produção animal (24 mil euros de receitas com leite, 110 mil com animais e 4 mil com ovos) e 4 em lenha (12 mil euros). O total de receitas ascende aos 368 mil euros, com os produtos a serem escoados essencialmente para dentro do próprio sistema prisional, nos EP e entre os funcionários.

Há ainda 36 homens envolvidos em trabalho nas Hortas Solidárias, projecto que resulta de um protocolo com o Banco Alimentar Contra a Fome, ao qual, no ano passado, foram entregues perto de 50 toneladas de produtos hortícolas cultivados nos estabelecimentos prisionais.

É época dos dióspiros quando chegamos ao estabelecimento prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos. Aqui, o portão parece o de uma prisão, mas depois de entrarmos temos a mesma sensação que tivemos em Izeda: a antiga propriedade, que terá pertencido à rainha Santa Mafalda, parece mais uma quinta, com palacete e tudo, do que um estabelecimento prisional.

A dimensão é bastante menor do que a de Izeda, são cerca de 30 hectares, 22 dos quais de área agrícola e o restante de floresta que também é explorada para a venda de madeira. A principal produção aqui é de leite — a cada dois dias, uma grande empresa industrial vem buscar cerca de 500 litros. O director, Hernâni Vieira, e o engenheiro agrónomo, Hilário Pinto, acompanham-nos numa visita. Cruzamo-nos com alguns detidos que trazem caixas cheias de dióspiros. As árvores estão carregadas, e alguns, demasiado maduros, caíram já ao chão.

Mais à frente está um rapaz a tomar conta de algumas ovelhas. Não é um rebanho grande como o de Izeda, mas é perto de uma dúzia de animais, e o pastor improvisado é um dos inimputáveis que estão neste estabelecimento, explica o director, e que beneficia muito deste trabalho junto aos animais. É que Santa Cruz do Bispo, onde estão detidos cerca de 500 homens, tem algumas especificidades: aqui estão presos do regime geral, mas há também uma unidade de psiquiatria e saúde mental, para os considerados inimputáveis (é a única no país e recebe actualmente 156 homens), e ainda uma Unidade Livre de Drogas para programas terapêuticos destinados aos reclusos que querem deixar o consumo.

Deixamos as ovelhas para trás e percorremos os caminhos da quinta. Há recantos românticos como o lago coberto de líquenes, com um repuxo no meio. E, à frente, um grande campo de milho atravessado pelo rio Leça, cuja água é usada para a rega, onde está a trabalhar um tractorista (que não é recluso, porque estes não estão autorizados a guiar tractor), acompanhado por um detido que o ajuda. Depois, o milho vai para a silagem — e aí encontramos vários reclusos que ajudam a despejar o que acaba de ser colhido para dentro de silos onde fica a fermentar até poder ser dado às vacas.

Na vacaria trabalha outro homem. Não é hora da ordenha, isso acontece mais cedo de manhã e novamente ao fim do dia, mas a nosso pedido ele traz uma vaca até ao sítio onde são ordenhadas. O animal parece meio confuso, até porque o passeio revela-se inconclusivo: ninguém lhe tira leite a esta hora, foi mesmo só para a fotografia.

Aqui há também horta, tudo biológico, e este ano a produção da batata tem sido extraordinária. “Há três semanas, oferecemos meia tonelada ao Banco Alimentar”, conta Hernâni Vieira. “No caso da batata, não damos vazão.” Os restantes legumes são vendidos aos cerca de 240 funcionários num mercadinho à entrada do EP. E outra parte é vendida à empresa fornecedora da alimentação no estabelecimento.

Passamos pela Unidade Livre de Drogas. Uns cinco ou seis reclusos estão no pequeno terreno exterior, agarrados a umas enxadas, cavando e preparando a terra para a sementeira. Aqui são acompanhados por técnicos especializados em toxicodependência e, embora não sejam obrigados a trabalhar, é importante que se mantenham ocupados.

Aliás, neste EP, sublinha o director, entre 75 e 80% dos homens têm algum tipo de ocupação, seja nas oficinas, onde fazem arranjos do material da prisão, das camas aos armários, seja na escola, que visitamos de seguida, onde um recluso pintou nas paredes excertos da história de O Principezinho de Saint Exupéry. Entre eles, o diálogo com a raposa: “O que é que estar preso quer dizer? […] Quer dizer que se criaram laços com alguém. Se tu me prenderes, a minha vida fica cheia de sol.”

Se em Izeda falhámos a apanha da azeitona, em Pinheiro da Cruz chegamos na altura certa para vermos a vindima. No passado, o vinho de Pinheiro da Cruz conquistou fama e ainda hoje se continua a produzir, apesar de o solo arenoso ser um desafio.

A praia não fica longe dali. No Carvalhal ou na Comporta, os banhistas comem peixe grelhado e mergulham no mar, mas o EP de Pinheiro da Cruz também tem uma praia própria, com uma frente de quatro quilómetros — afinal estamos a falar de uma área total de 1500 hectares de terreno, embora a maior parte seja floresta.

Já iremos à vinha. Primeiro, a directora, Maria da Ressurreição Moura, convida-nos a conhecer as oficinas. Num estabelecimento com perto de 650 homens, “há mais pedidos de trabalho do que oportunidades”, explica. E a maior parte dos homens prefere as oficinas às actividades agrícolas, apesar de já nos anos 50 do século XX Pinheiro da Cruz ser uma “colónia penal agrícola”. “As colocações são atribuídas de acordo com a data do pedido, a situação económica e familiar do indivíduo (damos prioridade a quem não tem apoio ou enquadramento no exterior) e o comportamento disciplinar.”

Há carpintaria e serralharia, oficinas grandes com mais máquinas do que homens, onde se fazem, por exemplo, as camas de ferro para os estabelecimentos prisionais e de onde podem também sair candeeiros de rua ou cadeiras de jardim, se houver encomendas de fora. Mas o grande orgulho de Pinheiro da Cruz é a oficina da Tecnidelta, onde a marca Delta põe a arranjar as máquinas de café.

Vários homens trabalham aí. “Neste momento, somos seis, quatro na mecânica e dois pintores”, afirma Nuno Nunes, um dos trabalhadores. “Cada um tinha a sua profissão diferente e recebemos formação dos técnicos da Delta.” Ocupados, “o tempo custa menos a passar”. Nuno não tem dúvidas quanto a isso: “Ter a mente ocupada é essencial para o recluso. O estar desocupado não seria bom para mim.” Além disso, “de hoje para amanhã, é uma mais-valia, são outras aptidões que se vão buscando”.

Todos repetem o mesmo. “Quero trabalhar porque é a minha profissão”, diz Paulo, que está na carpintaria. “Preciso de trabalhar, ganhar dinheiro, estar ocupado. Aqui é que me sinto bem.” Antes esteve na “brigada da cal”, uma invenção da direcção do estabelecimento para que os detidos ajudassem a caiar o edifício, mas o que o entusiasma mesmo é a oficina: “O melhor é estar ocupado, e logo na minha profissão, é ouro sobre azul.”

“A ocupação dos reclusos é fundamental no processo de reinserção social”, sublinha também a directora. “Muitas vezes é através dela que proporcionamos a aquisição de rotinas e de hábitos que nunca foram consolidados ao longo do percurso dos indivíduos no exterior.”

Mas, perguntamos, o objectivo principal é ocupar os reclusos ou rentabilizar os EP? “Rentabilizar não é o objectivo primeiro, mas essa preocupação existe”, reconhece Maria da Ressurreição Moura. “Só rentabilizando as explorações económicas e conseguindo algumas receitas é que podemos dinamizar, fazer novos investimentos e dar garantia de continuidade a estas iniciativas.”

Os homens que trabalham ganham uma quantia simbólica (cinco euros por dia, no caso das Hortas Solidárias) mas mesmo assim é um investimento — e se não há mais homens a trabalhar é, em parte, também por as verbas para lhes pagar serem curtas.

Licínio Lima, da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, reforça: “Queremos aproveitar os terrenos e as oficinas que temos e que estavam pouco aproveitadas.”

Foi nos anos 90 que o interesse pelas actividades económicas dentro dos EP começou a reduzir-se. “Muitos dos serviços que eram feitos pelos reclusos passaram a ser feitos por empresas exteriores, como aconteceu com a alimentação. Além disso, pensou-se na altura em alienar vários estabelecimentos prisionais, o que não chegou a acontecer.” Desinvestiu-se. Agora, a perspectiva é outra. “Estamos empenhados em aproveitar tudo para ocupar os reclusos e contribuir para a auto-sustentabilidade do sistema.”

Dificuldades? Ter mais reclusos em regime aberto no interior, o que implica também mais guardas para os acompanhar quando eles estão a trabalhar nos campos, explica Licínio Lima. Há falta de guardas, tal como há “muita falta” de técnicos superiores de reabilitação e reinserção, que acompanhem cada preso no percurso que, desejavelmente, lhe vai permitir passar para o regime aberto. “O indivíduo que chega a esse regime já nos dá garantias de que o que quer é trabalhar e cumprir a sua pena.” É por isso que “não temos casos de fuga neste regime, os casos de fuga acontecem com presos do regime comum, geralmente no início das penas e que ainda não assimilaram a ideia de que têm de as cumprir”.

Outro ponto que Licínio Lima faz questão de esclarecer: “As nossas actividades económicas têm como objectivo o mercado, mas não para concorrer com as actividades privadas.” Seria concorrência desleal, dado que a mão-de-obra é mais barata. “Por isso, queremos desenvolver produtos que não se encontram no mercado, como o milho tradicional para fabrico da broa de milho.”

Uma das apostas da direcção-geral é precisamente nos protocolos com empresas ou instituições exteriores, como a Delta. “Neste momento, temos 20 protocolos a aguardar a assinatura da ministra [da Justiça], o que significa que a comunidade se vai abrindo”, afirma. E sublinha: “O nível de reincidência é muito alto e o combate a esse problema tem de ser feito por todos. Quem tem de acolher o ex-recluso é a sociedade.”

Mas o objectivo da nossa vinda a Pinheiro da Cruz era ver a produção agrícola e em particular do vinho. Saltamos para o jipe e partimos. Solo de areia, pinheiros, pinheiros, já se sente o cheiro do mar lá ao fundo, mas não chegamos à praia, vamos só até ao meio da floresta à procura das colmeias que produzem o mel cuja venda se anuncia à porta do EP. A directora conta que difícil mesmo foi arranjar um recluso que aceitasse tratar das colmeias, mas finalmente conseguiu-se um.

Depois, seguimos até à vinha. Chegamos ao mesmo tempo que a camioneta que traz os reclusos — camisolas sem mangas, casacos amarrados à cintura, lenços amarrados à cabeça, luvas grossas para proteger as mãos. Não, não tinham experiência nenhuma de vindima, dizem. E não, não se importam muito de fazer este trabalho, se bem que, diz um, noutra cadeia já trabalhou na biblioteca e preferia, sempre dá menos dores nas costas. “Não tem nada a ver”, diz, “os livros aqui são as uvas”. Os guardas andam ali à volta, vigiando, e dando uma ajuda. Esta “brigada das vindimas” é a mesma que faz limpeza da mata, corta lenha, limpa a praia.

“Não fazer nada é stressante”, declara um dos homens, cortando calmamente mais um cacho de uvas. “Psicologicamente, é pior, aqui o tempo passa mais rápido e sempre é alguma coisa que a gente leva, mais uma experiência.” E sorri. “Não é por estarmos presos que deixamos de sorrir, além disso se viermos para aqui tristes contagia o grupo.”

O engenheiro António Matias, antigo guarda prisional, olha para os homens a trabalhar. Só lamenta que “esta seja a vinha do país instalada em solo mais pobre”, numa terra que “não tem qualquer fertilidade”. Mas o facto é que já há muito tempo que há vinhas aqui, mesmo antes da criação do EP no início da década de 1950. “Nos primeiros anos, o vinho era de má qualidade e servia para dar aos reclusos, que nessa altura podiam beber dentro do estabelecimento. Mas depois foi ganhando nome e reconhecimento e começou-se a comercializar.” Os principais clientes ainda são os funcionários dos serviços prisionais, mas algumas garrafas chegam aos supermercados com a marca Pinheiro da Cruz.

Há sobretudo tinto — uma produção de 10 mil litros, enquanto o branco não ultrapassou no último ano os dois mil. No entanto, a procura de branco tem vindo a aumentar e António Matias decidiu reconverter parte das vinhas velhas plantando castas brancas. Na adega, os homens fazem a selecção das uvas à entrada. No ar, há já o cheiro típico dos lagares, e a máquina que desengaça as uvas faz um barulho que dificulta qualquer conversa.

Quando a “brigada” terminar o trabalho e se for embora, quem fica a tomar conta de tudo isto é Paulo Isaac Sousa, recluso já a beneficiar de regime aberto e que vive aqui, numa casinha junto à adega. “Vendo o engenheiro a explicar vou aprendendo, aprendo depressa”, assegura. De agricultura, antes, sabia muito pouco. “Tenho aprendido tudo aqui. Às vezes, quando o pessoal do monte [os reclusos que tratam dos animais] sai de precária, eu vou dar uma ajuda com os porcos e as vacas. Estou sempre a mexer, há sempre coisas para fazer.” Mesmo assim, quando sair, vai voltar para a profissão que tinha antes: “Mecânico, do ramo automóvel.”

De três em três meses, tem licença para ir a casa durante uma semana. “É a única coisa que tenho na vida, a minha mãe, a minha mulher, que amo muito, e os miúdos. Quanto mais depressa sair, mais depressa estou ao pé dela e dos miúdos. Tenho de lutar por isso. Estou sempre com saudades deles. A cada dia que passa dói-me o coração.”

Sentado à porta da sua casa, ao lado da adega, desabafa: “Uma pessoa quando vai a casa vai sempre contente, mas depois tem de voltar. A gente errou, eu errei, temos de cumprir as nossas obrigações. Eu sempre cumpri, um dia que me for embora, vou ficar com uma boa imagem, um bom comportamento.” Fala rápido, comovido: “É assim a vida. O crime não compensa. Estou aqui há 14 anos, é muito tempo. Faço 45 anos em Dezembro. Chorei muito, pensei muito, sei que fiz mal, nunca chorei tanto. Mas tenho de aguentar, tenho de cumprir. Aqui mudei muito, cada vez estou mais velho. Quando sair, já vou com 46 ou 47, a gente já pensa de maneira diferente. Temos de cumprir. Já falta pouco.”

O trabalho na adega tem ajudado a passar o tempo, tal como o cuidar das porcas tem dado ânimo a António Vidinhas. À porta das suas casas, em Izeda ou Pinheiro da Cruz, ou a tomar conta de ovelhas e a apanhar dióspiros em Santa Cruz do Bispo, estão mais próximos da ideia de liberdade. “Aqui andamos à solta”, diz Pedro Crista, o “pastor” de Izeda, nos montes a ajudar ovelhas que acabaram de parir.

“Sempre se está melhor ao ar livre do que dentro de muros”, diz Avelino Marques dos Santos, sorrindo quando fala nas suas quedas do cavalo. “Tenho de cumprir a minha pena, e tenho, mas estou melhor aqui fora”, diz António Carneiro, o ajudante de Vidinhas, pescador da Póvoa olhando as porcas e pensando no dia em que irá sair e “voltar para o mar”. Quando estes homens forem novamente livres, é a comunidade que tem a obrigação de os acolher e os reintegrar, lembra Licínio Lima. Porque “toda a gente é maior do que o seu próprio erro”.