As boas ideias às vezes são feias e baixinhas

A Fruta Feia não tem mãos a medir. O Rés do Chão está a consolidar-se para crescer. Nasceram ambos no FAZ – Ideias de Origem Portuguesa, concurso que volta esta semana a desafiar a diáspora para conceber projectos de empreendedorismo social a implementar em Portugal.

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A Fruta Feia está numa luta a longo prazo contra si mesma. A cooperativa de consumo idealizada por Isabel Soares tem dois objectivos: o combate ao desperdício da produção fruto-hortícola é uma meta de curto prazo, que está a ter uma inesperada adesão de consumidores, produtores e até de grandes cadeias de retalho e chefs de relevo mundial; mas a meta final é fazer com que a fruta e os legumes sejam escolhidos independentemente do seu aspecto.

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A Fruta Feia está numa luta a longo prazo contra si mesma. A cooperativa de consumo idealizada por Isabel Soares tem dois objectivos: o combate ao desperdício da produção fruto-hortícola é uma meta de curto prazo, que está a ter uma inesperada adesão de consumidores, produtores e até de grandes cadeias de retalho e chefs de relevo mundial; mas a meta final é fazer com que a fruta e os legumes sejam escolhidos independentemente do seu aspecto.

Quando chegar a essa fase, o projecto porá em causa o activismo – e o propósito – do próprio nome. Fruta feia e fruta bonita serão fruta. Só. É claro para todos os envolvidos, no entanto, que essa é uma realidade longínqua. A cooperativa ainda está na zona ascendente do desenho, a subir vertiginosamente pela tromba do elefante. Embora esteja a crescer a um ritmo mais célere do que o previsto, está longe do ponto mais alto (a cabeça do paquiderme). Quando lá chegar, quando o aspecto da fruta for irrelevante, começa a descer até se tornar dispensável.

“Sempre foi o objectivo final da Fruta Feia que a fruta fosse comercializada independentemente da sua forma, tamanho e coloração. Que a única coisa da qual o preço dependesse fosse a qualidade”, diz ao PÚBLICO Isabel Soares, engenheira do ambiente, que venceu com este projecto o segundo prémio do FAZ – Ideias de Origem Portuguesa em 2013.

O concurso promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Cotec desafia os emigrantes portugueses a delinear projectos de empreendedorismo social e financia três vencedores em cada edição com um total de 50 mil euros. A Fruta Feia arrecadou 15 mil. No mesmo ano, a Orquestra XXI conseguiu os 25 mil euros do primeiro lugar e o Rés do Chão recebeu 10 mil. Todos se realizaram: a orquestra reuniu músicos portugueses com carreiras no estrangeiro para quatro concertos em Portugal e o Rés do Chão abriu em Junho o seu primeiro piso térreo reabilitado em Lisboa. Mas a Fruta Feia explodiu – como se todos estivéssemos à sua espera.

“A Fruta Feia é uma ideia muito lógica. Tal como eu, muita gente já se tinha apercebido deste problema, mas nunca se tinha feito nada. É das primeiras iniciativas que surge que não só denuncia este problema como apresenta uma solução viável”, diz Isabel Soares. O problema é o do desperdício alimentar provocado pela exigência das grandes superfícies comerciais exigirem aos agricultores produtos a tender para a perfeição. A cooperativa aproveita os produtos rejeitados, paga um “preço justo” por eles e revende-os à sua rede de associados.

Às segundas-feiras, Isabel Soares e Maria Canelhas saem de manhãzinha, na grande carrinha da cooperativa (a segunda; a primeira ardeu), e visitam os agricultores a quem encomendaram vegetais na semana anterior: pêras, maçãs, cerejas, romãs, tomates, alfaces, batatas, favas, cenouras, cebolas, agriões, limões, morangos – o que tiverem os 32 produtores do Oeste que aproveitam o projecto para escoar o que os supermercados não querem. Paulo Ramos Dias, da Hortocambaia, em Mafra, é um deles. E é um “anjo-da-guarda”. É ele quem guarda de um dia para o outro a parte dos produtos que só será entregue na terça-feira aos associados. Sem armazém, Isabel e “Mia” poupam dessa forma um segundo périplo. Basta voltarem ali.

Paulo faz mais: vai ele próprio buscar os alhos franceses ao amigo Pedro Reis para lhes poupar tempo. “Os alhos franceses são aqui a três quilómetros e eu vou lá sempre buscá-los e trago-os para aqui. Não me custa nada. Nem ganho nada: o preço que pago é o preço que recebo”, conta. Gosta de ajudar. E por isso, volta e meia, apesar da timidez, põe-se a dar entrevistas.

Os media estão atentos à Fruta Feia. Em Portugal e no estrangeiro – Espanha, Itália, Suíça, Polónia, Turquia, China, Brasil, EUA. “O New York Times veio a Portugal fazer a saída da troika e a Fruta Feia”, recorda Isabel com orgulho. À pergunta sobre se alguma vez pensou ter tanto impacto mediático, responde em crescendo: “Não, nunca pensamos. Não. Não! De todo!”

A notoriedade ajudou na relação com os agricultores, complicada a início. “Achava que seria a parte mais fácil. Mas cheguei a ser escorraçada de explorações agrícolas. Não acreditavam em mim”, diz Isabel Soares. A dúvida era pertinente: foram anos a deitar para o lixo tudo o que era torto e sem o calibre pretendido. Por que haveria alguém agora disposto a pagar por isso? Paulo Ramos Dias analisa: “As coisas também mudam. Não é só pela crise. As pessoas mudam. As mentalidades…” Algo que ele e os restantes produtores agradecem: “O volume de negócio não é muito grande, mas paga-me quase o salário de um funcionário ao longo do ano.”

Num ano de actividade, a Fruta Feia conseguiu evitar cerca de 60 toneladas de desperdício. Maria Canelhas fala numa “crescimento exponencial”. “Era suposto o projecto arrancar com 40 associados; arrancou com 100. Nesta altura, era suposto estarmos em 210 e vamos nos 500”, adianta. “Temos uma lista de espera considerável. O que é bom. Quer dizer que as pessoas estão interessadas em comer fruta feia. Mas acaba por ser um angustiante porque ainda não temos estrutura nem recursos para acompanhar a procura.”

O próximo passo será criar um terceiro ponto de distribuição, o primeiro fora de Lisboa (na capital, a distribuição faz-se à segunda-feira na Casa Independente e à terça no Ateneu Comercial). Será uma delegação “independente” que funcionará inicialmente sob supervisão e a partilhar a carrinha da casa-mãe. A cooperativa não tem capacidade financeira para crescer à velocidade da procura. Ao impulso inicial dado pelo FAZ e por uma campanha de crowdfunding acresceu o Prémio Inovação Crédito Agrícola (5 mil euros) no mês passado, mas na Fruta Feia fazem-se figas para conseguir um “mega financiamento europeu” a que concorreram.

A presença em Agosto no MAD, simpósio gastronómico fundado por René Redzepi, chef do Noma, restaurante dinamarquês considerado o melhor do mundo, deu-lhes acesso directo a 600 dos mais influentes agentes na gastronomia mundial. “Gostaram muito [da apresentação], emocionaram-se, riram e, no final, deram-nos os parabéns”, recorda Isabel. “O René Redzepi adorou.” Mas fará algo para combater o desperdício? E os demais nos seus países? Em França, o primeiro passo foi dado pelo Intermarché, através da campanha Fruit et Legumes Moches.

Flexibilizar por aí
No FAZ – que hoje, segunda-feira, abre inscrições para a quinta edição do concurso –, os projectos são pensados para começar com o valor do primeiro prémio. Os segundos e terceiros classificados têm de procurar financiamento extra ou parceiros. Tal como a Fruta Feia, foi o que fizeram as quatro arquitectas do Rés do Chão. O projecto-piloto demorou um pouco mais a arrancar, mas está desde Junho de portas abertas no bairro de São Paulo, em Lisboa.

É o número 119 da rua do Poço dos Negros, antiga mercearia que estava há mais de uma década fechada e a funcionar como armazém. Marta Pavão, Margarida Marques, Mariana Paisana e Sara Brandão, as ideólogas do projecto, persuadiram os proprietários a arrendar-lhes o espaço – eles preferiam vender –, reabilitaram-no e transformaram-no num misto de atelier e loja ocupado por quatro designers de moda, uma designer de produto e um arquitecto, que o subarrendam por diferentes intervalos de tempo. O Rés do Chão gere e promove o espaço.

“Uma desconfiança que tínhamos era que um dos problemas para existirem tantos pisos térreos desocupados é o facto de as pessoas não terem capacidade para arrendar os espaços por períodos longos. No projecto-piloto assumimos o risco de arrendar o espaço por um período longo e damos às pessoas a possibilidade de ocupar espaços menores por períodos flexíveis”, explica ao PÚBLICO Margarida Marques, que regressou a Portugal para implementar a ideia. Marta e Mariana fizeram o mesmo. Sara, a única que trabalhava em Lisboa quando o projecto foi submetido a concurso, emigrou – mas continua a participar à distância.

Quando apresentaram o Rés do Chão, a ideia era que no longo prazo a dinâmica criada pela recuperação dos pisos térreos estimulasse a reabilitação dos pisos superiores. Ou seja, em vez da habitual reabilitação em altura, edifício a edifício, promovia-se uma recuperação da cidade pela vida de rua. A escolha do local para o projecto-piloto não foi por acaso.

“O bairro de São Paulo é estratégico ao nível dos transportes e da acessibilidade, muito central, com património arquitectónico muito elevado, e sempre teve ruas com um carácter económico e mercantil efervescente”, aclara Marta Pavão. “Quando começámos a fazer o levantamento dos pisos térreos desocupados, em muitas das ruas eram quase 50%.”

Apesar de os turistas serem clientes de relevo para as marcas subarrendatárias, Marta frisa que não querem um projecto “alienígena”. Até porque é no fomento das relações com outros comerciantes e associações que apostam para o Rés do Chão se replicar pelo bairro.

“O nosso objectivo é dar resposta a todas as pessoas que nos têm contactado – nem todas têm projectos que fazem sentido acolher aqui”, refere Margarida Marques. O levantamento dos pisos térreos desocupados naquela zona está feito e alguns proprietários estão abertos à ideia. “O objectivo agora é facilitar o contacto entre potenciais arrendatários e os proprietários dos espaços que conhecemos”. A receita será a mesma: flexibilizar os períodos de arrendamento para pequenos negócios e estimular o movimento – para a frente e para cima.