Entre o céu e o inferno no nordeste chinês

Se a música dos Dawanggang continua a ser um acto subversivo, a dos Hanggai segue por atalhos

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Dawanggang: uma subversão constante dos códigos pop/rock ocidentais

A voz de Song Yuzhe soava a um mundo virado do avesso, possuída por um registo demoníaco, especialmente sintonizado com o gutural troar de Tuva do também violinista Zeng Xiaogang; de vez em quando, calavam-se os dois para dar espaço ao canto de Cao Yuhan, um registo feminino que ia do celestial ao terrorífico no espaço de uma frase. Em cada momento dessa actuação dos Dawanggang, parecíamos estar perante um combate primário entre Bem e Mal, entalados entre sonho e pesadelo.

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A voz de Song Yuzhe soava a um mundo virado do avesso, possuída por um registo demoníaco, especialmente sintonizado com o gutural troar de Tuva do também violinista Zeng Xiaogang; de vez em quando, calavam-se os dois para dar espaço ao canto de Cao Yuhan, um registo feminino que ia do celestial ao terrorífico no espaço de uma frase. Em cada momento dessa actuação dos Dawanggang, parecíamos estar perante um combate primário entre Bem e Mal, entalados entre sonho e pesadelo.

A gravação de Huang Qiang Zou Ban, que nos chega tardiamente, não incide tanto nesse duelo. Mas partilha com a memória desse concerto uma subversão constante dos códigos pop/rock ocidentais. Sempre que os Dawanggang se aproximam dessa matriz parece ser, na verdade, apenas para nos lembrar que, apesar da inspiração em sonoridades tradicionais do nordeste chinês, dominam esse vocabulário e trata-se, portanto, de uma recusa consciente não enveredarem nele por inteiro. Temas como Talking About BirdsThin Bear e Hunter funcionam como um lembrete do seu acto subversivo, cuja eficácia exige, em parte, ter presente o modelo original.

Os caminhos dos Dawanggang são, por isso, intencionalmente desviantes e incluem uma ocupação sedutora do espaço, fazendo com que cada instrumento soe precioso e não apenas mais uma muleta para a canção avançar. Ao mesmo tempo, não seguem na cauda daquela que foi a banda de rock mongol (depois da versão de Tuva pelos pioneiros Yat-Kha) a impor involuntariamente um novo padrão na concepção externa desta música: os Hanggai. Só que os Hanggai, cuja apropriação do rock se fazia de uma forma precária, como se não fosse mais do que um eco longínquo chegado de forma esbatida às estepes, e cujas aproximações ocidentais reportavam para uma certa toada punk de pub (The Drinking Song seria o exemplo por demais evidente), foram progressivamente perdendo o contacto com essa relativa inocência de canção taberneira. E após a saída de Hugjiltu (tocador de um pequeno violoncelo com cabeça de cavalo chamado morin khuur) para formar os Ajinai, perderam algum viço e viraram-se para atalhos.

O que equivale a dizer que Baifang soa aos Hanggai a buscarem o conforto, a seguirem as pisadas que imaginam serem as exigíveis para poderem fazer parte do mundo, mas em que se deixam perverter pela intromissão pouco ágil da linguagem do rock na ruralidade remota mongol. Mesmo se em Tavan Hasag e Qinghai Lullaby temos óptimos exemplos de como a estranheza do rock pesado ou da folk britânica podem funcionar neste contexto, é na natureza mongol dos Hanggai que o grupo verdadeiramente se notabiliza. Essa natureza, inebriante quando intocada, parece agora sob uma subtil ameaça.