Leonard Liggio e a tradição da liberdade

Leonard Liggio recordou-nos que um dos principais contributos para impedir o “Estado total” foi dado pelo cristianismo.

Era também um colaborador frequente da revista Nova Cidadania, publicada por aquele Instituto. A última edição da revista (Ano XV, No. 54, Outono-Inverno 2014) inclui, aliás, um artigo de Liggio intitulado Liberalismo e Cristianismo. O texto é uma excelente expressão do posicionamento intelectual de Leonard Liggio e de uma das áreas que mais o apaixonavam, o da relação entre liberdade e religião.

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Era também um colaborador frequente da revista Nova Cidadania, publicada por aquele Instituto. A última edição da revista (Ano XV, No. 54, Outono-Inverno 2014) inclui, aliás, um artigo de Liggio intitulado Liberalismo e Cristianismo. O texto é uma excelente expressão do posicionamento intelectual de Leonard Liggio e de uma das áreas que mais o apaixonavam, o da relação entre liberdade e religião.

Leonard Liggio pertencia a uma velha escola intelectual – outrora respeitada, hoje ameaçada pelo conformismo politicamente correcto – que associava a tradição da liberdade à mensagem e tradição cristãs. Alexis de Tocqueville e Lord Acton são duas referências cruciais dessa escola, embora muitas outras pudessem ser citadas. Liggio, que era católico tal como Tocqueville e Acton, foi um dos mais empenhados continuadores recentes dessa tradição.

É uma tradição que enfrenta muitos preconceitos. Na Europa continental, a religião tende a ser colocada em oposição à liberdade e esta é interpretada como uma invenção moderna – em regra associada à funesta revolução francesa de 1789. Por essa via, a liberdade é também associada à emergência do centralismo estatal, em que ao Estado é atribuída a missão de dirigir e comandar a sociedade em função de um propósito unificador – em regra a chamada “modernização”, mas também a “secularização”, ou a “libertação através da razão”, ou a igualdade, ou qualquer outro “nobre” propósito unificador. Basicamente, por esta via, o Estado abandona a função de proteger a liberdade de usufruto de modos de vida espontâneos, não centralmente comandados, e tende a transformar-se num “Estado total”.

Leonard Liggio pensava que todos esses preconceitos continentais partiam de um erro original: a crença de que a liberdade é uma invenção moderna, em ruptura com a tradição cristã medieval. Daí as suas insistentes contribuições sobre temas relacionados com a tradição pré-moderna da liberdade e com o contributo crucial do cristianismo para a emergência do conceito de liberdade da pessoa e da sua consciência.

Este é, aliás, o tema do artigo de Leonard Liggio na última edição de Nova Cidadania. Trata-se de uma longa recensão ao livro de Ralph Raico The Place of Religion in the Liberal Philosophy of Constant, Tocqueville, and Lord Acton. Liggio enfatiza a relevância da obra para a redescoberta de uma tradição liberal clássica que procura limitar o poder do Estado, em vez de ver no Estado a fonte e o motor da chamada “modernização” da sociedade civil. Constant, Tocqueville e Acton foram certamente grandes expoentes dessa tradição, entretanto caída em desuso.

No centro das preocupações dos três autores, recorda Liggio, estava a limitação de um novo poder central – o Estado moderno – que reunia numa única sede central poderes antes difusos e partilhados entre várias sedes plurais (em regra, de natureza aristocrática). Esta preocupação de limitação do poder estava inscrita na tradição da liberdade e era sobretudo associada à doutrina da separação de poderes preconizada por Montesquieu e retomada pela Constituição norte-americana de 1787-8.

Mas a separação de poderes, recorda Liggio, sendo crucial, trata sobretudo da esfera do Estado – não limita necessariamente essa esfera por outras que lhe sejam exteriores e que imponham limites ao alcance do poder do Estado. Esta limitação externa requer o reconhecimento da existência de esferas de actividade que são autónomas e estão para além do alcance da esfera política e estatal – que impedem um “Estado total”. Designamos hoje essas esferas por “sociedade civil”.

O reconhecimento da importância da autonomia e pluralidade da sociedade civil supõe, por sua vez, um entendimento pluralista da liberdade – para além dos tradicionais entendimentos rivais da liberdade como “libertação individual” ou como “participação colectiva”. O conceito de “sociedade civil” remete para a “difusão dos poderes” e para a existência plural de várias associações civis que estão fora e para além do alcance do poder político central. É a sociedade civil que impede a absorção de toda a vida social por um “Estado total”.

Leonard Liggio recordou-nos que um dos principais contributos para impedir o “Estado total” foi dado pelo cristianismo e pela sua exigência de liberdade da consciência, contra a obrigação política de “adorar os deuses da cidade”.