Alentejo semitropical

1. Estou a escrever debaixo de uma chuva tropical, de novo. Há meses que é isto, volta e meia umas tempestades como só me lembro de ver e ouvir no Brasil: calor, braços nus e cascatas brutas, por vezes ribombantes, com trovões. Aconteceu mesmo, neste meu quintal alentejano, aquilo que acontecia muito no jardim em que morei no Cosme Velho, lá no Rio de Janeiro: os cães da casa grande pularem a cerca, em pânico com os trovões, e correrem até à minha porta aberta. Ao longo de todo o Verão, muitas noites alentejanas se passaram nessa banda sonora de trovoada e chuva no telhado, tudo aquilo a que no hemisfério norte só estávamos habituados no Inverno. Como é o primeiro Verão que passo aqui, não tinha noção de até que ponto isto era estranho ao lugar, incluindo a estranha coincidência do ainda verde com o já podre. Mas agora que acabo de falar com o meu amigo agricultor biológico, o Zé, o leitor de Agamben e de Espinoza, fico a pensar no quanto tudo isto é mesmo a passagem para outra coisa, a alteração de um mundo mediterrânico.

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1. Estou a escrever debaixo de uma chuva tropical, de novo. Há meses que é isto, volta e meia umas tempestades como só me lembro de ver e ouvir no Brasil: calor, braços nus e cascatas brutas, por vezes ribombantes, com trovões. Aconteceu mesmo, neste meu quintal alentejano, aquilo que acontecia muito no jardim em que morei no Cosme Velho, lá no Rio de Janeiro: os cães da casa grande pularem a cerca, em pânico com os trovões, e correrem até à minha porta aberta. Ao longo de todo o Verão, muitas noites alentejanas se passaram nessa banda sonora de trovoada e chuva no telhado, tudo aquilo a que no hemisfério norte só estávamos habituados no Inverno. Como é o primeiro Verão que passo aqui, não tinha noção de até que ponto isto era estranho ao lugar, incluindo a estranha coincidência do ainda verde com o já podre. Mas agora que acabo de falar com o meu amigo agricultor biológico, o Zé, o leitor de Agamben e de Espinoza, fico a pensar no quanto tudo isto é mesmo a passagem para outra coisa, a alteração de um mundo mediterrânico.

2. Já não falávamos há semanas, porque o Zé tem tido o telefone fixo avariado e não usa telemóvel. Além de que o Verão, para ambos, foi a estação em que tínhamos de fazer o que tínhamos a fazer, ele na terra, eu num livro. Era naquele momento ou não era, em suma, passámos ambos o Verão a lutar. Só que a luta do Zé é com mil moinhos externos, e nada imaginários, uns humanos, outros naturais, se é que os naturais não incluem os humanos. Então quando finalmente o achei esta manhã, e lhe perguntei pelo Verão, a primeira coisa que ele disse foi: é uma história trágica.

3. Uma história que começa em Maio. Antigamente, diz o Zé, caía uma chuva ou duas, mas desta vez choveu, e choveu, o que atrasou as sementeiras um mês, e depois mais chuva, o que foi fatal, por exemplo, para o melão, um melão com fama entre quem procura fruta biológica. O Zé trabalhou nele desde Fevereiro, e agora, ao vender, a colheita rendeu 15 euros. O esforço de uma estação. Tremoços e grão também sofreram, já nasceram “enraivados”, diz o Zé, explicando que é assim que aqui se diz do que já nasce frágil, como uma criança que dificilmente depois fica um belo rapaz. E se isto continua, diz o Zé, ainda estraga a batata-doce e o amendoim, vai tudo ao ar.

4. Para já não falar da azeitona. O Zé tem oliveiras centenárias, e o azeite biológico é o centro de tudo o que ele produz. Este ano vai ser catastrófico, teme ele, porque a azeitona já era pouca, e se continua assim nem fazem azeite. O que acontece é que com o tempo quente, como esteve, a azeitona amadurece, mas, como não pára de chover, apodrece, fica “gafa”, como aqui se diz, porque a larva da mosca da azeitona reproduz-se loucamente. Este ano, a maior parte das azeitonas tem três furos em vez de um ou nenhum. O Zé receia que daqui a duas semanas já nem valha a pena apanhá-la, porque terá passado de verde a podre. Há 30 anos, a colheita da azeitona era em Novembro, e o Zé chegou a apanhá-la até Fevereiro. Agora, no fim de Outubro, talvez já esteja morta. Porque cada vez está mais quente e cada vez chove mais.

5. Há todas as razões globais que sabemos para isso. Mas também haverá razões locais. O Zé cita um artigo que leu há pouco de um climatologista alertando para a barragem do Alqueva, 60, 70 quilómetros de água que não existiam. A evaporação cria uma nuvem de humidade que não deixa passar as massas de ar húmido do mar para Espanha, então essas massas, com os tais 60, 70 quilómetros de largo, ficam paradas aqui onde estamos, entre o mar e Elvas. Terá sido por isso que, pela primeira vez em 40 anos, o Zé viu chover em Maio com vento de nordeste. Esse vento é um protótipo de tempo seco, se choveu, crê o Zé, foi nitidamente por causa dessa massa húmida, parada.

6. Claro, as grandes trovoadas, o aumento constante de temperatura vêm de tudo o resto que o planeta conhece. E, tudo somado, o Zé acredita que esta zona se esteja prestes a tornar semitropical húmida, sendo que os agricultores não estão habituados a isso, na escolha das sementes, das árvores. Será uma adaptação climática difícil.

7. Isto dito, e sem parar de chover ao longo da conversa, ninguém lhe tira o ânimo, assegura ele. Porque na agricultura biológica não se trata de transformar quilos em dólares, é um jogo com a natureza, uma relação simbiótica. Além de que não é seu feitio viver preocupado, idem para o filho Jerónimo, que com ele trabalha. Não lhes passa pela cabeça vender a quinta, ir abaixo num desespero. Em 40 anos de agricultura, diz o Zé, fica-se muito duro, sem perder ternura, e o equilíbrio pode continuar. É um fluxo, para o ano seguinte cá estamos.

8. Ontem não choveu sempre, então deu para plantar cenoura, espinafre, rabanete. Hoje, com chuvarada desde manhã cedo, e a horta encharcada, toca de pôr as galochas, pegar no guarda-chuva e ir andar com as ovelhas durante quatro horas. Ou tratar da lenha, para as cercas dos rebanhos, para queimar nas salamandras, que daí a nada já vem o frio. Ou, ou, porque há sempre tudo a fazer, não acaba.

9. E quando já não há luz para a horta, para os rebanhos, para os olivais, há os livros, que também não acabam. Agora o Zé anda às voltas com uma antologia do Al-Andaluz, textos ao longo de sete séculos. Ele diz que me empresta. Para nos lembrarmos de como era o Mediterrâneo.     

Foto
ANTONIO CARRAPATO