Um penetra de festivais numa gloriosa despedida da adolescência

Desde que as circunstâncias o levaram a entrar sem pagar em Coachella, Marcus Haney especializou-se em ser penetra de festivais. Furou mais de 50, sempre recolhendo as imagens que compõem o documentário No Cameras Allowed, o seu rito de entrada na idade adulta.

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Marcus Haney: “Nada de demasiado complicado [furar festivais]. Só muita paciência e confiança” DR

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Embora tudo isso esteja no filme, ressalva Haney, tal imagem de guia prático passo-a-passo de como ser penetra em festivais de música é da inteira responsabilidade da MTV. No seu entender, há todo um lado humano em No Cameras Allowed que lhe dá outro berço. Em vez de Ocean’s Eleven, pense-se então em Ferris Bueller’s Day Off [O Rei dos Gazeteiros, em português]. “Claro que as partes excitantes de passar pela segurança e todos esses elementos estão no filme”, admitiu Haney ao PÚBLICO aquando da sua recente passagem por Lisboa a convite do TalkFest, “mas uma das coisas que me dá realmente gozo é que o público pode esperar e encontrar esse filme, mas confronta-se também com um lado muito pessoal.” É precisamente o lado pessoal a sobrepor uma narrativa coming-of-age ao tom de epopeia festivaleira. Daí Ferris Bueller, daí o filme de John Hughes. À medida que Haney salta vedações ou ludibria seguranças, a relação com família e amigos vai engrossando e dando forma a um quadro de gloriosa festa de despedida da adolescência. Depois disto, do forçar a mão de comportamentos tidos como recrimináveis – por mais do que uma vez é apanhado na sua incursão nada oficial – espera-o a idade adulta.

Um festival igual a 50
Tudo começou em 2010, era Marcus Haney “um virgem de festivais”. Com as suas bandas preferidas, os seus amigos mais próximos e a rapariga por quem andava embeiçado a caminho de Coachella, um dos pontos altos do calendário musical nos Estados Unidos, os bolsos vazios de Haney não o demoveram de também se fazer à estrada e improvisar uma forma de entrar. “Fui com um amigo, vestimo-nos completamente de preto durante a madrugada, caminhámos ao longo do perímetro do recinto, vimos onde podíamos saltar uma vedação, estudámos a movimentação da segurança, percebemos qual era a altura certa para saltar e corremos para debaixo de um camião no parque do backstage. Depois esperámos nove horas, os portões abriram, começou a haver muita gente a circular e misturámo-nos.” Salvos por um par de barras de cereais e bebidas energéticas, ao fim das nove horas caminharam com o coração em sobressalto e ao passar a primeira barreira de segurança não foram impedidos de prosseguir mas antes saudados com um “bom dia”.

A partir deste momento, Marcus Haney, que ia munido de máquinas fotográficas e de filmar, com o pulso cheio de pulseiras de todas as cores, comportou-se como se fosse um profissional da imagem e apresentou-se sempre no fosso dos fotógrafos para captar imagens de gente como Jay-Z, Mumford & Sons ou Edward Sharpe & the Magnetic Zeros. No final da experiência, coisa a roçar o impossível, quando partilhou as fotos online acabou por ser contactado pelo festival Bonnaroo, pedindo-lhe a utilização da sua imagem de Jay-Z na promoção do festival. E tomado o gosto pela adrenalina da situação e pela consciência súbita de que mesmo os grandes festivais eram “penetráveis”, Haney voltou a por-se a caminho, entrando, desta vez, pela porta do backstage com toda a desfaçatez e simplicidade. Foi então que percebeu que de telemóvel encostado ao ouvido e com o ar de enfado de quem foi enviado à força para trabalhar num festival, à vista de toda a gente, a sua presença não autorizada aumentava exponencialmente as probabilidades de ser bem-sucedida. Ao mesmo tempo, tentava ganhar confiança com os seguranças – conhecendo-lhe a cara, já ninguém procuraria nos seus pulsos a acreditação em causa. Foi isto que contou no auditório do ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão), na mais recente sessão do TalkFest – por onde já passaram The National e Ney Matogrosso, e cuja próxima iniciativa, a 10 de Novembro, contará com os alemães Guano Apes.

Ao fim de dois festivais, Haney estava viciado e diante de cada novo cartaz que o entusiasmava fazia a trouxa com os mesmos objectivos: fotografar e ouvir as suas bandas preferidas em palco, infiltrar-se sem pagar a entrada. Aos poucos, reunindo todo o material, foi percebendo que tinha um filme só à espera de ser montado. Experimentou primeiro montar uma curta-metragem sobre a sua passagem pelo Bonnaroo e conseguiu fazê-la chegar aos Mumford & Sons. Como paga, recebeu um convite da banda para os acompanhar em Glastonbury e em digressões posteriores. Ficou amigo do grupo inglês ao mesmo tempo que se via perante um dilema: acompanhá-los na estrada ou realizar os exames finais da sua licenciatura. Era, no fundo, um braço-de-ferro curioso e definidor da sua vida – terminava os seus estudos e seguia para uma busca convencional por um primeiro emprego ou aceitava um trabalho remunerado que funcionaria como primeira etapa de uma possível carreira na fotografia. “O que é que vocês teriam feito no meu lugar?”, pergunta no filme, com um esgar que deixa adivinhar a escolha.

Essa partilha de intimidade com os Mumford & Sons levou-o a perceber a fúria gerada pelo seu filme – dos directores de festivais irritados pela possibilidade de se multiplicarem as tentativas de entrada à socapa, mas também daqueles que vêem assim os seus truques expostos e se queixam que, de futuro, serão mais facilmente apanhados. Nas perguntas e respostas do TalkFest, Haney explicou que todos os festivais estavam esgotados e, portanto, não “roubou” nenhum possível encaixe financeiro às organizações. Por outro lado, a proximidade com a banda inglesa, levou-o a ver de perto o quão importante é para uma banda ser devidamente paga pelo seu trabalho. “É uma loucura o quanto estas bandas trabalham no duro e a menos que tenham um sucesso explosivo mal conseguem atingir o break-even numa digressão”, diz ao PÚBLICO. Também a participação financeira da MTV na fase final de pós-produção foi vital para custear o processo e os direitos de autor a todos os artistas cuja música anima No Cameras Allowed.

Talvez por isso, Haney passou a aplicar os seus talentos noutras situações: já entrou nos Grammy sem ser convidado e furou um discurso de Obama, acabando a apertar-lhe a mão. “Nada de demasiado complicado”, ri-se. “Só muita paciência e confiança.”