O que mostram as imagens dos prisioneiros de Donetsk cercados por baionetas arcaicas e telemóveis modernos

A exibição dos soldados ucranianos capturados pelas forças pró-russas pode não ter consequências jurídicas.

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Esta foi a cena que correu o mundo, ontem. Um acontecimento perturbador, incomum, quase anacrónico. Vários activistas de direitos humanos, e alguns juristas, alertaram para a violação das regras que, nas convenções internacionais, defendem o estatuto dos prisioneiros de guerra. No caso do conflito na Ucrânia, classificado pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha como um “conflito interno armado”, a Convenção de Genebra criminaliza o “atentado à dignidade humana” cometida sobre os prisioneiros. A vice-directora da Human Rights Watch, Rachel Denber, escreveu no twitter que a exibição nas ruas de Donetsk viola a proibição internacional de tratamento “degradante e humilhante” sobre os prisioneiros. Mas vários outros especialistas de direito internacional consideram ser muito difícil levar este caso à justiça.

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Esta foi a cena que correu o mundo, ontem. Um acontecimento perturbador, incomum, quase anacrónico. Vários activistas de direitos humanos, e alguns juristas, alertaram para a violação das regras que, nas convenções internacionais, defendem o estatuto dos prisioneiros de guerra. No caso do conflito na Ucrânia, classificado pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha como um “conflito interno armado”, a Convenção de Genebra criminaliza o “atentado à dignidade humana” cometida sobre os prisioneiros. A vice-directora da Human Rights Watch, Rachel Denber, escreveu no twitter que a exibição nas ruas de Donetsk viola a proibição internacional de tratamento “degradante e humilhante” sobre os prisioneiros. Mas vários outros especialistas de direito internacional consideram ser muito difícil levar este caso à justiça.

Desde logo porque, adianta ao PÚBLICO José António Pinto Ribeiro, advogado, fundador do Fórum Justiça e Liberdades, a auto-denominada República Popular de Donetsk não é “um sujeito de direito internacional”. A Rússia e a Ucrânia não reconhecem a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia. E tudo isso, prossegue Pinto Ribeiro, “impede uma discussão séria, jurídica, coerente, sobre este assunto”.

O ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, garantiu que a discussão jurídica pode prosseguir mas que não viu, naquelas imagens, “nada que remotamente se assemelhe a um abuso”.

No entanto, o desfile dos prisioneiros é construído “como um grande acontecimento visual”, explica Sérgio Mah, professor universitário, especialista em história da imagem. E essa é uma das características da propaganda. “De certeza que quem decidiu organizar esta parada sabia que ela ia ser transmitida”. Objectivo: “Replicar o olhar de um sujeito comum, reforçar um discurso prévio." Esta é, continua Mah, uma repetição de algo que já vimos, “no século XX”. “Trágica”, sublinha.  

André Barata, professor de Filosofia na Universidade da Beira Interior, considera que há  nesta exibição um “preço elevado”: “Acirrar o inimigo pelo humilhação dos seus é pôr o ódio à sua identidade como fundamento de uma guerra. Deixa de ser um conflito de interesses, um desentendimento de posições, que poderiam ser negociados, intermediados, resolvidos a contento de ambas as partes, para passar a ser um conflito de identidades que apenas se resolve, na convicção de ambas as partes, pela eliminação ou expulsão da outra parte.”

A forma como tudo isto foi feito, em Donetsk, parece curto-circuitar o próprio tempo. Uma imagem obsoleta revestida de modernidade, explica André Barata: “Completa-se assim o espectáculo de forma sinistra, usando o objecto mais pós-moderno e mais familiar do quotidiano das pessoas – o seu telemóvel pessoal – para registar, como para memória futura, a rejeição mais anti-moderna do outro – lavar o chão que ele pisou como se ele fosse o mal em pessoa. Parece um paradoxo mas não é.”

Até porque toda esta cena pode ser – de forma explícita, ou não – uma espécie de recriação. Estaline organizou uma parada semelhante, com prisioneiros de guerra alemães, em 1944, nas ruas de Moscovo. Também ali foram usados jactos de água para “limpar” as pegadas dos adversários.

Se o desfile procurava ser uma batalha na guerra “psicológica”, José António Pinto Ribeiro duvida da eficácia: “Os que são mostrados sofrem, os que mostram os que são mostrados sofrem também.” No fundo, continua o advogado, em Donetsk, na Ucrânia, vive-se mais um episódio da “História que nos últimos 800 anos marcou a Europa”. A formação de Estados nacionais.

A unificação, ou a desagregação, dos Estados já “gerou duas guerras mundiais”, nos últimos 100 anos, prossegue Pinto Ribeiro. E pouco se aprendeu, entretanto… “Se este é um movimento inexorável, porque não o fazemos pacificamente? A Jugoslávia não serviu para aprendermos nada?”, questiona.

Sérgio Mah também usa a Jugoslávia como termo de comparação com as imagens de Donetsk. A mesma “violência” que é exibida pelas “fotografias dos judeus a serem presos, ou as imagens da guerra dos Balcãs”.

Mais uma vez, o passado ressurge: “A memória fica guardada no telemóvel, são fotografias de humilhação a serem provavelmente partilhadas nas redes sociais, como imagens de culto deste nosso tempo”, conclui André Barata.