Os Black Lips explicaram em Paredes de Coura como crescer bem e ser um bom Bad kid

Depois de um dia tão recheado como foi o de quinta, com Franz Ferdinand, Mac DeMarco ou Thee Oh Sees, a sexta-feira foi bem mais serena em Paredes de Coura. Os Cut Copy foram cabeças-de-cartaz mas não entusiasmaram. Os Black Lips foram um bálsamo de boa loucura, canções pop na ponta da língua e rock’n’roll tatuado no corpo

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“One, two, three, four” e venha nova canção. Chega Bad kids, a última, o My generation da geração deles, e o mosh torna-se mais intenso lá em baixo, junto ao palco, e a dança e a cantoria torna-se mais alegre mais acima no anfiteatro natural.

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“One, two, three, four” e venha nova canção. Chega Bad kids, a última, o My generation da geração deles, e o mosh torna-se mais intenso lá em baixo, junto ao palco, e a dança e a cantoria torna-se mais alegre mais acima no anfiteatro natural.

A meio do concerto, enquanto os Black Lips, distintíssimos marginais do rock’n’roll vindos de Atlanta, na Georgia, deixavam soar, lentamente, a linha de baixo que introduz Oh Katrina, um dos seus singles mais reconhecidos, uma voz grave e bem colocada exorta ao nosso lado: “Vámonos!” Os Black Lips não ouviram o espanhol que queria ritmo, velocidade, acção. Mas foram: e lá arrancou o rock’n’roll garageiro, tão eficaz e urgente quando gloriosamente desconchavado.

De perfeições plásticas está o inferno (e o mundo actual) cheio e os Black Lips, ao longo dos últimos dez anos, têm sido um bálsamo de boa loucura, de canções com a pop na ponta da língua e rock’n’roll tatuado no corpo – não nos espantemos, portanto, se o pessoal da sua geração cantar Bad kids ou Modern art (“turn around, start it over, let’s begin”) como se as canções lhes pertencessem (e pertencem); não nos surpreendamos se, depois de ver um homem-crocodilo invadir o palco de Mac DeMarco, quinta-feira, vejamos no dia seguinte, enquanto tocam os Black Lips, um homem em fato de zebra aos saltos no mosh. É só rock’n’roll e rock’n’roll assim vale muito a pena.

Sexta-feira, no terceiro dia do Vodafone Paredes de Coura, o dia corria ao ritmo habitual. A rua principal da vila cheia de gente nas esplanadas, com velhotes sentados nos bancos, observando a animação. Subindo desde o campismo e pela estrada que o circunda, ia passando gente de toalha ao ombro, encaminhando-se para um mergulho refrescante na piscina municipal.

Viver o festival "à séria"
Poucas horas depois, o duo americano Buke and Gase, que andou a viver o festival "à séria", preferindo uma tenda no campismo ao conforto de um hotel, enfiava-se num campo de futebol para dar mais um dos concertos surpresa das Vodafone Music Sessions. Às 19h, estariam no palco principal com os seus instrumentos inventados – um ukulele barítono eléctrico, por exemplo – para tocar música que é como que versão reduzida a duo das fantasias dos Deerhoof. Pouco antes deles, o power trio barcelense Kilimanjaro inaugurava o palco principal e dava o mote para um cenário que tem sido habitual: carrega-se na distorção stoner, berra-se em voz enrouquecida, o ritmo acelera como nos ensinaram os Motorhead e o povo faz a festa (leia-se mosh, surf sobre o público e demais agitação).

Depois de um dia particularmente recheado, o da quinta-feira que nos ofereceu concertos de Franz Ferdinand, Thee Oh Sees, Mac DeMarco ou Thurston Moore, a penúltima noite de Paredes de Coura foi menos rica em momentos memoráveis mas teve 24 mil pessoas. Depois dos Kilimanjaro, os Linda Martini fizeram o que tão bem sabem: pôr a juventude sónica em alvoroço, guiada pelas palavras gritadas como raiva e catarse (“os ratos vão-nos devorar!”, ouve-se). A banda de Turbo Lento não sabe fazê-lo mal – estar em palco, isto é. E, ao longo dos anos, construiu uma relação privilegiada com um público que, por esta altura, sabe lê-los na totalidade. “Vamos tocar uma canção que vocês não devem conhecer”, diz Cláudia Guerreiro. Está a apresentar Lição de voo nº 1. “Não conhecemos? É a minha preferida de sempre”, exclama o homem atrás de nós, que lhe cantará depois a letra, palavra a palavra. Confirma-se, com os Linda Martini são sempre muitos a ganhar.

Várias horas depois, quando a noite era já madrugada, os Cut Copy, cabeças-de-cartaz de sexta-feira, surgiam como momento atípico: à electrónica muito funcional, guiada pelos sintetizadores e batida house, sucediam-se tangentes ao disco com os Daft Punk no pensamento, pegavam-se em guitarras e cantava-se como Bobby Gillespie, dos Primal Scream, nos seu tempos da Madchester. No ecrã fora projectada a frase “Free your mind”, título do último álbum dos australianos. Se houve libertação ela foi, porém, deveras contida. No topo do anfiteatro natural, via-se um imenso mar de cabeças. Imóveis, sem sinais exteriores de dança, sem que o pó se erguesse como tanto se tem erguido pela dança efusiva e pelo mosh. E nem Lights & Music, o êxito transversal da banda, editado em 2008, alterou significativamente o cenário. Um final contido no palco principal, no dia até agora mais “sereno” desta edição do festival.

Rock em ebulição
Vimos os Yuck, no secundário, devolver-nos os anos 1990 como gostaríamos que os anos 1990 tivessem sido: rock em ebulição, sonicamente bem temperado e com melodia pop assomando entre o ruído (festa, naturalmente); vimos os Perfect Pussy serem terroristas sónicos sem vestígios de subtileza – estridência hardcore, sintetizador à Atari Teenage Riot, uma vocalista berrando muito furiosa, muito ruído e muita raiva mal dirigida. Enquanto isso, Conor Oberst mostrava-se aprendiz talentoso das lições de Dylan, o que montou a Rolling Thunder Revue, e da The Band que gravou Songs From the Big Pink. Guitarra acústica na mão, voz sofrida cantando folk-rock de coração exposto (“when I asked your name, you asked the time”, versos de Lover I don’t have to love, do catálogo Bright Eyes), trouxe uma banda encharcada na tradição americana, com o órgão Hammond como sempre bem-vindo tapete sonoro, com a intimidade de cantautor dando lugar a country-rock acelerando como em locomotiva no velho Oeste. O público acompanhou serenamente, muito dele sentado na relva do anfiteatro. O sobressalto chegaria logo a seguir.   

No palco, um pano branco muito simples, qual cartaz em concerto de baile de finalistas: “Black Lips”. Abaixo dele, um gangue de quatro músicos (ocasionalmente cinco, quando se lhes junta uma saxofonista), abana-se e agita-se ao ritmo da música. Luzes baixas deixam-nos na penumbra, algo acentuado pelos fumos de palco lançados incessantemente. Não é certamente um baile de finalistas. É uma banda que se vê, de forma provavelmente inédita, numa posição de destaque num festival, a ser igual a si própria. São punks com canções pop na cabeça, garageiros com queda para o humor e para pitadas de psicadelismo (e sai o carrossel opiáceo que é a versão de Hippie Hippie Hooray, original de Jacques Dutronc).

Têm baladas de uns anos 1960 sabotados no seu ingénuo optimismo (“Do you really wanna hold my dirty hand”, unem-se em coro). O baterista Joe Bradley, qual Beach Boy muito animado (o penteado não engana), canta abanando a cabeleira. Cole Alexander, gorro na cabeça, qual protagonista de Breaking Bad com uma guitarra nas mãos, exibe convicto uma voz sempre à beira do descalabro. Jared Swilley, o baixista, e Jack Hines, o outro guitarrista, o homem dos espasmos punk, juntam as suas vozes aos coros, com toda a intenção e todo o entusiasmo, nem sempre com a afinação certa (mas quem quer saber de afinação quando as canções têm esta urgência pela vida?). Ouve-se Boys in the wood, rock’n’roll pintado a negro e single do último álbum, o óptimo Underneath the rainbow, ouvira-se Family tree, qual clássico do Brill Building enxertado de genes punk, ver-se-á, enquanto o público frente ao palco continua a celebrar em alegre rebaldaria de mosh e afins, uma banda que traz ao rock uma clareza de propósitos que só pode entusiasmar: são as canções, senhores, e é o que uma banda faz delas, vivendo-as no limite, quando sobe a um palco.

Olhamos para eles, ouvimo-los. São pessoal do garage-rock marginal que invadiu gloriosamente o palco principal de um celebrado festival de verão. São um gangue que ataca a música com o balanço e as melodias dos Beatles nos dias selvagens de Hamburgo (mas com pouco queda para afinarem nas harmonias vocais). Foram o momento mais feliz (em sentido literal e figurado) da noite de sexta-feira em Paredes de Coura - e depois tocaram o já clássico Bad Boys e tudo dança e toda a “juventude sónica” enfrenta, ignorando-a, a desesperança do mundo.

Ao início da tarde do dia seguinte, o anfiteatro natural do Parque Fluvial do Taboão está (quase) vazio de gente. Na vila ou no campismo, recupera-se energia para o último assalto. Ouve-se a trompete de Beirut no palco principal. Zach Condon faz o teste de som. Foram dele e de James Blake os concertos mais aguardados da despedida, no sábado.