Terra em transe

A estreia dos HHY & The Macumbas é realismo mágico narrado em linguagem dub.

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Os HHY & The Macumbas são uma experiência xamânica, um ritual que escancara as portas para outra realidade — misteriosa, envolvente PAULO PIMENTA

Também lhes vimos alguns concertos: uma torrente de percussão, metais dardejando melodias, reverberações espiralando pelo espaço sónico, máscaras escondendo o rosto dos músicos. Throat Permission Cut, o disco de estreia, é resultado dessa experiência de palco, da música em roda livre. Não o confundamos, porém, com um álbum ao vivo.

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Também lhes vimos alguns concertos: uma torrente de percussão, metais dardejando melodias, reverberações espiralando pelo espaço sónico, máscaras escondendo o rosto dos músicos. Throat Permission Cut, o disco de estreia, é resultado dessa experiência de palco, da música em roda livre. Não o confundamos, porém, com um álbum ao vivo.

A música que foram criando em concerto, quer em Portugal quer em cidades como Paris, Berlim, Bruxelas ou Corunha, foi a matéria-prima trabalhada em estúdio por Jonathan Uliel Saldanha (é ele o HHY e é também, juntamente com Filipe Silva, fundador do colectivo artístico portuense Soopa), produtor e compositor que conta no seu percurso com colaborações com Adolfo Luxúria Canibal, Adrian Sherwood, Mark Stewart, Steve Mackay, o saxofonista dos Stooges, ou Carlos Zíngaro. Como refere a própria banda, a ideia era que a gravação se transformasse em eco da efemeridade da experiência ao vivo. 

O que ouvimos nas cinco faixas que compõem a edição, longas peças que se desenvolvem de forma orgânica, como se cada textura sonora se reproduzisse lentamente, mutando-se discreta mais decisivamente perante os nossos ouvidos, é música sem centro definido. Interessa assaltar-nos os sentidos, sentir que há um espaço novo que se cria, incerto, misterioso, envolvente, através da conjugação de percussão (João Filipe, Frankão, Filipe Silva e Brendan Hemsworth), metais (Álvaro Almeida, André Rocha e Rui Fernandes), baixo (Rui Leal), teclados e manipulação sonora. Em Isaac, the throat, os metais surgem como vagas, quais clarins de orquestra épica chorando, altivos, um requiem. À medida que a música avança, porém, a luxúria da percussão impõe-se, o som retalhado do trompete tremeluz sobre as vagas originais e a majestosidade inicial torna-se hipnótica, quase terapêutica — não temos referências precisas, temos o som e a forma como nos conduz, à uma telúrico e fora deste mundo. É uma experiência intensa, guiada pela intuição mas trabalhada com olhar (que dizemos?, ouvido) de sonoplasta: é voodoo caribenho e as mutações jazz da década de 1970, quando colectivos como os Oneness Of Juju se viraram para África em busca de identidade; é orquestra modernista marginal e banda-sonora de guião improvisado. 

Ao longo dos cinco temas, manter-se-á o calor luxuriante das percussões, mas alteram-se as tonalidades: reverberações electrónicas e samples de voz cruzam o ritmo lento, opiáceo, de BarbaronLewopa de cristal pode ter o Haiti inscrito no título (lewopa significa “leopardo” em crioulo haitiano) e é certamente atravessada pela sensação de se tratar de um som emanando de um espaço natural mitificado — mas desviando o olhar enquanto viajamos deparamos com a música copta que Mulatu Astatke transformou em transe jazz e uma ponte entre o Haiti e a nostalgia avassaladora da folk do centro europeu.

Essa capacidade de ser tão diversa mantendo um centro definido (a bateria minimal e a cadência contínua das percussões, bem como o sopro dos metais, são o pulsar cardíaco desta música) é a grande vitória de Throat Permission Cut, obra de uns HHY & The Macumbas que são realismo mágico narrado em linguagem dub. Música viva. Música como eco, enunciado pelos próprios, de uma realidade alterada: mergulhamos nela e nadamos para longe. Não sabemos onde seremos conduzidos, mas temos por certo que a viagem será compensadora.