O paradoxo que mata
John le Carré, então ainda muito próximo da sua carreira como espião, mostra que é capaz de enredar infinitamente um
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
, segundo romance da
Trilogia de Karla, (nome de código do controlador soviético do KGB e “nemésis” de George Smiley, o operacional inglês), é bastante diferente do anterior
Tinker, Tailor, Soldier, Spy(1974), obra que surgiu como uma espécie de catarse na ressaca dos escândalos que envolveram (nos anos 50 e 60) os célebres Cinco de Cambridge, Guy Burgess, Donald Maclean, Anthony Blunt, John Cairncross e Kim Philby, que desertaram para a então União Soviética. Smiley, o sorumbático, atormentado e “prufrockiano” agente que pretende ter deixado para trás a época mais agitada da sua vida mas que é constantemente chamado para resolver novas e cada vez mais inglórias situações, prefigura-se como uma das personagens mais complexas do autor, aquela que assombra os seus livros desde 1961, quando emergiu em
Call for the Dead. Neste romance, encontramo-lo já aposentado, embora continue a investigar a incompetência dos seus antigos patrões, bem como as traições e os desmandos daqueles que continuam em funções. Chamado a ocupar, interinamente, a chefia dos serviços de espionagem — o chamado Circo — a partir de um minúsculo escritório em Londres, os seus dotes de super-espião são postos à prova, não como agente mas como director, estendendo os seus tentáculos tão longe quanto a base de Hong-Kong (“um rochedo britânico gerido por uma mão cheia de comerciantes de pescoço avermelhado”) num esforço melancólico para resolver o insolúvel, colocar ordem no caos e “olear” eficazmente as operações, num momento histórico conturbado (alargamento da influência soviética, iminente queda de Saigão) e enquanto tem de lidar, também, com as suas angústias e com a infidelidade da mulher de quem, finalmente, se separa.
Smiley recruta Jerry Westerby, o “colegial” do título, aristocrata obscuro, romancista falhado, várias vezes casado, um ex-agente que se aborrece no seu retiro em Itália e se dispõe a engrossar as hostes de jornalistas de diversas nacionalidades (praticamente aprisionados na então colónia inglesa na China), com a missão de seguir o rasto de largas somas de dinheiro que afluem, provenientes de Moscovo, para uma conta numerada, pertença de uma figura poderosa, um tal Drake Ko, presidente da China Airsea e conhecido filantropo. A partir dos sufocantes quartos e clubes da colónia, é possível contemplar o território inimigo, essa China que se agiganta sob a liderança de Mao Tsé-Tung. Para Westerby, é o início de um longo e acidentado percurso através do Laos, do Camboja e da Tailândia, com a missão de sabotar os financiamentos de Moscovo no Extremo Oriente, à medida que investiga os segredos de Ko e se embrenha cada vez mais numa rede perigosa e funesta.
Em O Ilustre Colegial — cuja epígrafe é um verso de Auden que refere os rapazes que desde o Colégio sabem que “o Mal com Mal se paga” —, embora seja visível a influência de Graham Greene, a verdade é que le Carré cria, em Westerby, um protagonista parecido com o James Bond de Ian Fleming, mais um de uma longa lista de atraentes e cavalheirescos britânicos que, com a mesma facilidade e desenvoltura, atravessam fronteiras a salto, roubam segredos, escondem cadáveres, manipulam governos e exércitos, emborcam gins e martinis, agregam-se em saudável e estrepitoso convívio com os seus pares e inimigos e suam as estopinhas, enquanto fêmeas embasbacadas os seguem quase sem pestanejar. De notar o contraste com Smiley, assoberbado por questões morais, enredado em paradoxos, perseguido pela traição de amantes, amigos e camaradas e permanentemente agastado com a incompetência das instituições, com a venalidade dos políticos, com a ganância dos “primos” americanos e com a omnipresente chuva londrina.
O Ilustre Colegialfaz justiça à ideia de que a espionagem é um dos terrenos mais férteis para a ficção; com o seu jogo de sombras e uma perpétua rotatividade de máscaras, vai ao encontro da irónica frase do autor: “Ao que parece, só a traição é intemporal.”