Eu não peço desculpa, Aníbal

Nestas coisas de rir, sou muito ruim: gargalho com Chaplin a tropeçar e o meu diafragma contrai-se involuntariamente com Jon Stewart a gozar com o fanico de Bush II, engasgado num Pretzel

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Insomnia Cured Here/Flickr

Ri-me com a queda de Cavaco e não me apetece pedir desculpa. Calma, gente, não me odieis já, escutai ao menos a história do meu riso: nesse dia cheguei a casa, liguei o portátil, e dei com a imagem de Cavaco carregado em ombros. Ri-me. Não sabia que Aníbal tinha desmaiado, inté pensei que era macumba de photoshop.

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Ri-me com a queda de Cavaco e não me apetece pedir desculpa. Calma, gente, não me odieis já, escutai ao menos a história do meu riso: nesse dia cheguei a casa, liguei o portátil, e dei com a imagem de Cavaco carregado em ombros. Ri-me. Não sabia que Aníbal tinha desmaiado, inté pensei que era macumba de photoshop.

Óspois soube que nosso Primeiro fora acometido de um chilique durante seu discurso. Não cuidei de procurar vídeos para aferir do sucedido, mas li nos media que um protestante fizera Aníbal I desfalecer. Ri-me outra vez derivado a minha cabeça imaginar um pastor baptista a gritar, munido de um amplificador (tamanho festival de verão) às costas.

Nisto veio o meu grande amigo Nuno Costa Santos afirmar que chegámos a um ponto de tensão social em que já nos rimos do desmaio de um homem e ele se recusava a fazê-lo. E de seguida Ferreira Fernandes escreveu que Cavaco discursava, usando a sua "prerrogativa de eleito", quando um sujeito lhe berrou, usando "da regalia de cidadão", e continuou a berrar depois de Cavaco desmaiar.

“Sou tão mal formado”, dei por mim a pensar, “tratou-se, decerto, de uma tentativa de homicídio por volume decibélico e eu a rir”. Nestas coisas de rir, sou muito ruim: gargalho com Chaplin a tropeçar e o meu diafragma contrai-se involuntariamente com Jon Stewart a gozar com o fanico de Bush II, engasgado num Pretzel. (Stewart é um ser moralmente corrompido que faz piadas com enfermidades de presidentes.) Também me ri de um vídeo de John Oliver a fazer pouco de uma queda de Blatter – que nunca foi condenado em tribunal, embora os seus amigos sejam suspeitos de algumas coisas feias.

Na minha pobre cabeça, destruída por anos de pornografia colombiana e imprensa séria portuguesa, Cavaco tivera um ligeiro achaque, certamente derivado a fraqueza (dizem-me que a Maria não o deixa comer em público, de há uns anos para cá). Devia o povo chorar? Se chorássemos a cada vez que alguém desfalece de fome neste país ninguém trabalhava.

Aceitando o repto do Nuno e do Ferreira Fernandes, olhei o caso de forma moral, só que em vez de me centrar no berro, mirei o impoluto cavalheiro que há anos chamou dia da Raça ao Dia de Camões: um homem que preferiu a sua reforma ao salário de PR que lhe cabia, cujos ex-ministros, que protegeu anos a fio, estão enterrados até à medula no caso BPN, que custou sete mil milhões de euros ao país e lhe rendeu 375 mil euros em negociatas de acções.

Este homem não desfaleceu porque está desempregado e com fome ou está doente e não consegue pagar os medicamentos; nada de mal lhe aconteceu. E no entanto, as almas moralistas da nação querem que eu me sinta mal por ter rido com aquela graça chaplinesca e insinuam que Cavaco desmaiou à conta de uns berros.

Ferreira Fernandes escreveu mesmo que um cidadão (que não faço ideia quem é) estava a protestar exercendo a sua REGALIA de ser CIDADÃO. Talvez tenha dado um chilique a Ferreira Fernandes. É que regalia é privilégio de rei; a palavra, historicamente, foi usada com monarquias e oligarquias. Em democracia não há cá regalias: o CIDADÃO, seja ele qual for, tem direitos e deveres. É, aliás, esta a primeira diferença entre democracia e sistemas assim não muito democráticos.

No meu lerdo parecer, queridos Nuno e Ferreira Fernandes, antes de me moralizarem o riso deviam moralizar a fome, o desemprego, os bancos, os imorais impostos que os pagam e os imorais que causaram a coisa ou os amigos que a esconderam e mantêm. Admito que isto soe demagógico. Mas eu sou um imbecil que se ri com John Stewart a gozar com o Pretzel de Bush II e fica ofendido quando vê as taxas de desemprego.