Há revolução na aldeia

Tiago Patrício leva o processo revolucionário até uma terra perdida no meio das serras transmontanas.

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Tiago Patrício volta a demonstrar um domínio invejável do diálogo Rui Gaudêncio
Na raia, à vista das serras e das fragas, entre senhores feudais, bastardos, criadas, lavadeiras e pastoras, o espírito novo tenta germinar em terra seca de arrebatamentos. Num lugar onde a autoridade terrena e espiritual partilham dono — e não é o altíssimo — e os sonhos se enterram mais depressa do que os homens.

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Na raia, à vista das serras e das fragas, entre senhores feudais, bastardos, criadas, lavadeiras e pastoras, o espírito novo tenta germinar em terra seca de arrebatamentos. Num lugar onde a autoridade terrena e espiritual partilham dono — e não é o altíssimo — e os sonhos se enterram mais depressa do que os homens.Ao segundo romance, Tiago Patrício volta às paisagens que bem conhece, as mesmas terras que davam título ao livro com que ganhou o prémio revelação Agustina Bessa Luís em 2011 (Trás-os-Montes), para nos oferecer um primoroso estudo de um lugar identificável no espaço mas avesso a submeter-se ao tempo. A qualquer um: no interior atávico, a mudança é adjectivo ruim, coisa do diabo. “Há muitos montes à nossa volta, dizem que o Estado Novo também teve dificuldade em chegar cá e agora somos o último reduto da servidão”, diz um dos personagens no decurso do Processo Revolucionário (p. 62). É difícil arrancar maus hábitos, resignações.Remetendo pelo título ao Noventa e Três de Victor Hugo e, por consequência, à Revolução Francesa, Mil Novecentos e Setenta e Cinco é menos idealista no seu retrato e mais terreno nos que retrata. E embora se possam usar os personagens como arquétipos de um mundo que se basta a si mesmo por não querer (saber?) olhar mais além, o escritor evita que isso seja da sua lavra. Prefere que seja o leitor a colher.O que, sim, há neste livro é um domínio invejável do diálogo como motor essencial da narrativa — fruto do gosto pelo teatro e do trabalho de Tiago Patrício na dramaturgia —, uma preocupação atenta à caracterização rigorosa de um microcosmos com linguagem e características próprias — não só no espaço, também no tempo —, fechado às influências externas: um feudo onde ainda não chegara a televisão, esse instrumento essencial da democratização — e da uniformização. Como afirma Fernanda, a estudante que vem do Porto para ver de perto a revolução a acontecer: “Estou fascinada com a tua aldeia, Horácio. Se a pudesse descrever com uma frase, acho que diria que é um paraíso desconhecido até para quem cá mora. Parece que vive aqui um povo isolado do mundo.” (p. 265) E Horácio não tem outra coisa para responder que um “nós somos de ferro… Fernanda.” A aldeia é um microcosmos suspendido durante um ano, como um limbo histórico, um parêntesis de modernidade na narrativa habitual, onde até a morte descansa para desgraça do coveiro que acabará dedicado às leituras e às escritas por ausência de quem enterrar (“Bons tempos, em que as pessoas ficavam doentes e dali a um par de meses morriam. Agora não, é uma desgraça”). Há nas suas narrativas, introduzidas quase no fim do livro, contornos de fantasia que nos remetem para Alexandre Herculano: “Vós, os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás, sentai-vos aqui à lareira, bem juntos ao pé de mim (…) e não me digam no fim: — ‘não pode ser.’ – Pois, eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral nos seus cantares” (Lendas e Narrativas).É como a revolução: outros continuarão a usá-la como assunto literário e a contar o que nela foi feito e o que dela se fez com narrativa empolgante, metáfora boa, personagens de se lhe tirar o chapéu, mas ninguém contará tão bem como Tiago Patrício a história da revolução nesta aldeia.