Casanova contra Drácula

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A vida de Giacomo Casanova, veneziano, já deu vários filmes, os mais célebres porventura os de Luigi Comencini e Federico Fellini, nos anos 60 e 70, bem como dúzias de alusões, variações, actualizações e figurações ao longo dos tempos e nos quatro cantos do mundo. A figura do Conde Drácula, a partir do seminal Nosferatu (assim chamado para “esconder” o filme dos detentores dos direitos do romance de Bram Stoker), também. Promover um encontro entre os dois é coisa que, se já tinha passado pela cabeça de alguém, nunca fora posto em prática. É esse o encontro essencial proposto pelo realizador catalão Albert Serra em História da Minha Morte, título que decalca, virando-o do avesso, o da mais célebre e autobiográfica obra de Casanova.

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A vida de Giacomo Casanova, veneziano, já deu vários filmes, os mais célebres porventura os de Luigi Comencini e Federico Fellini, nos anos 60 e 70, bem como dúzias de alusões, variações, actualizações e figurações ao longo dos tempos e nos quatro cantos do mundo. A figura do Conde Drácula, a partir do seminal Nosferatu (assim chamado para “esconder” o filme dos detentores dos direitos do romance de Bram Stoker), também. Promover um encontro entre os dois é coisa que, se já tinha passado pela cabeça de alguém, nunca fora posto em prática. É esse o encontro essencial proposto pelo realizador catalão Albert Serra em História da Minha Morte, título que decalca, virando-o do avesso, o da mais célebre e autobiográfica obra de Casanova.

Em Serra, o encontro com figuras literárias não é novidade: já elaborara, na sua primeira longa-metragem, Honra de Cavalaria (2006), sobre Dom Quixote e Sancho Pança, e no filme seguinte, O Canto dos Pássaros (2008), sobre os três bíblicos Reis Magos. E portanto, se com esta preparação nada há de estranho em que apareçam agora Casanova e Drácula, a primeira pergunta que, ao telefone, fazemos a Albert Serra procura saber das razões do seu interesse específico nestas figuras e no seu cruzamento. Como tantas vezes no cinema, há elementos corriqueiros e fortuitos por trás da escolha: “Tinha um produtor romeno que insistia comigo para arranjar uma história e um filme que pudesse ser feito lá, que tivesse alguma coisa a ver com a Roménia.” O transilvano Drácula é a figura que mais fácil e universalmente se associa à Roménia e foi dela que Serra se lembrou — mesmo “se a questão do horror” lhe interessa pouco, confessa. “Por alguma razão nunca achei muita graça a filmes do género.” Precisava portanto de alguma coisa para dar mais sentido ao seu Drácula, e encontrou-a por acaso, quando se entregou à leitura das memórias de Casanova, e no seu espírito nasceu a ideia de uma oposição entre ambos: “Casanova como homem sofisticado do século XVIII, intelectual e racionalista, e Drácula como um seu reverso sombrio, uma força irracional e destrutiva.” Encontrado o motivo — e como nos seus outros filmes, “motivo” num sentido próximo da acepção pictórica do termo —, Serra fez o possível por esquecer tudo: “Não é uma adaptação literária, nem é uma ‘versão’ das histórias de cada um, é uma fantasia pura que põe em diálogo os dois imaginários dominantes do século XVIII, o racionalismo e o romantismo.”

Transparência ?e opacidade

Alguma coisa na estrutura de História da Minha Morte, nem que seja a progressão narrativa em torno destes seus dois dissonantes protagonistas, sugere uma complexidade maior do que nos seus filmes precedentes, que não tinham esta dissonância para trabalhar e seguiam caminhos muito mais lineares, ainda que — traço comum ao seu Quixote e aos seus Reis Magos — singularmente esvaziados de peripécias. Era óbvio, nesses dois casos, que Serra não trabalhava com um argumento no sentido tradicional do termo. Aqui a dúvida põe-se-nos: parece-nos um filme muito mais “escrito” do que os precedentes. “É verdade”, diz Serra, embora isso não signifique que se trate de “um filme muito escrito”: escreveu “um argumento completo” para o ajudar a encontrar financiadores, mas guardou-lhe a indefinição suficiente para manter todas as possibilidades em aberto. E, assegura, “a estrutura narrativa só se definiu no momento da rodagem.”

Ainda assim, e sabendo que o método de trabalho de Serra com os seus actores assentava primordialmente no improviso, insistimos. Desta vez, quando pensamos por exemplo nos longos monólogos de Casanova, parece-nos difícil acreditar que tudo nasça do improviso puro, e que não haja uma estrutura textual minimamente forte por trás. A resposta é, mais uma vez, mista. Serra explica que o (não-)actor que interpreta Casanova (Vincenç Altaió) é na vida real escritor e poeta, está à vontade com as palavras, é um “intelectual”, e o realizador pediu-lhe, como preparação para o papel, que lesse “o Casanova todo e mais tudo o que encontrasse sobre Casanova”, porque esse seria “o seu texto”. Mas acontece “que Atlaió tem muito má memória”, e portanto a maior parte dos seus diálogos e monólogos consiste em “versões improvisadas e alteradas” daquilo que leu — é então “verdade que existe um texto por trás”, mas isso não quer dizer que o que se vê e ouve no filme seja “o texto”, antes a luta do actor com ele (algo que é, de resto, crucial não só no filme como no método de Serra). E sublinha o realizador que Atlaió “foi o único a ler o guião”, privilégio que não foi concedido a nenhum dos outros actores, entregues apenas às indicações de Serra no momento de filmar.

Outro aspecto essencial em História da Minha Morte é o tratamento da luz, bastante diverso do “naturalismo” de Honra de Cavalaria ou do esquematismo a carvão do preto e branco de O Canto dos Pássaros. Mais do que a transposição cromática do duelo entre luz e sombra que marca a narração, para Serra “trata-se mais de dar expressão a um confronto entre transparência e opacidade”, e de conquistar para a narração “um pouco mais de abstracção”. É o mundo de Casanova, “mais legível e transparente”, a ser dominado “pela opacidade do mundo de Drácula”, duma maneira que, espera Serra, releve também a “fragilidade um pouco hipócrita” do primeiro face à “opacidade bruta, muito material”, do segundo.

Apesar do seu lastro cultural, e propriamente cinéfilo, História da Minha Morte continua a parecer um filme sem modelo, capaz de evocar dúzias de outros sem realmente evocar nenhum. Serra, que é um cinéfilo razoavelmente enciclopédico, diz que quando filma faz por esquecer-se dos filmes que viu, e que não há nenhuma preocupação em relacionar-se com qualquer tradição narrativa ou figurativa “seja para continuar seja para cortar”. E que o filme “poderá ter alguma relação com certas coisas de Buñuel ou de Carmelo Bene” mas que o propósito é mesmo “esquecer”. O toque mais “cinéfilo” vem no fim do genérico de fecho, com um agradecimento especial a Adolfo Arrieta, autor de alguns dos mais belos, loucos e obscuros filmes espanhóis das últimas décadas. Queremos saber o que fez Arrieta em História da Minha Morte: “Uma personagem que tive cortar da montagem final, mas guardei algumas cenas lindíssimas com ele. É um homem encantador, muito divertido, e que me apoia muito. Arrieta e Pere Portabella são os únicos realizadores espanhóis que respeito artisticamente. Mas o filme já estava com duas horas e meia, ficaria interminável se não cortasse…”