Lily Allen, a anti-diva

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R.A.

Lily Allen nunca foi de se esconder atrás das palavras. Pelo contrário, atira-as o mais que pode à sua frente, para ter a certeza de que, quando passar, terá olhares a seguir-lhe os passos. Mas isso implica igualmente que o seu fulgor pop viaje carregado de pequenos explosivos e não se limite a montar umas quantas frases que rimem e pareçam bonitinhas em conjunto. As rimas, ainda assim, não são irrelevantes. Segundo a cantora, Sheezus, antes de qualquer boutade atirada na direcção de Kanye West (cujo último álbum o proclama como Yeezus), é uma pequena invenção à medida para fechar um verso que é conveniente fazer par com “divas”. Até porque Allen não parece interessada em parodiar a megalomania desenfreada de Kanye West (e o facto de este crer piamente que não respira o mesmo ar nauseabundo que os restantes mortais), nem em trucidar a pressão mediática e autoinfligida que existe para a criação de um campeonato semelhante de deificação no feminino. Dá a ideia de estar convencida de que esta megalomania concorre mais para sintoma do que vai mal no mundo pop do que para diagnóstico final de narcisismo de acordo com os critérios definidos em qualquer prontuário médico.

Lily Allen garante até que mandou recado a Kanye West a avisar que o título é respeitoso e não uma ridicularização em forma de facadinha pelas costas. E quando chama Lady Gaga, Beyoncé, Lorde ou Rihanna para a letra de Sheezus, o tema de abertura, Allen diz estar a protestar contra esta prática virtual de enfiar cantoras numa imaginária luta na lama pelo simples facto de partilharem o espaço pop e, tão simples quanto isso, um ciclo menstrual. “Periods, we all get periods / Every month, that’s what the theory is” canta antes de aventar que Ri-Ri (Rihanna) não tem medo do rugido de Katy Perry (a propósito do single Roar - rugido) e que a novata Lorde “ain’t one to fuck with when she’s only on her debut”. Quando termina o refrão e reclama a coroa – depois de passar por Lady Gaga comentando que se a rapariga está disposta a morrer pela sua arte, então deve mesmo ser uma mártir –, a menor das preocupações de Lily Allen deverá ser a probabilidade de enfurecer quaisquer comunidades religiosas que se sintam ultrajadas com a sugestão de uma figura feminina à imagem de Jesus.

Esse ringue mental a que Lily Allen se refere passa, em grande parte, pela inevitabilidade das comparações que logo começam a pingar assim que se ouve o primeiro single (dela ou de qualquer uma das outras cantoras que nomeia). “I’m ready for all the comparisons / I think it’s dumb and it’s embarrassing”, desabafa ainda em Sheezus. Mas Allen não ignora que estas batalhas imaginárias radicam igualmente numa hiper sexualização da pop actual. Foi, na verdade, esse facto que a levou a escolher um vídeo para Hard out here, que era só rabos a abanarem-se, a serem açoitados e pouco mais. Nick Cave fizera algo semelhante há alguns anos, embora mais comedido, quando pediu a John Hillcoat que lhe realizasse um teledisco para Bring it on a partir do maior cliché então existente na linha de montagem de vídeos. No caso de Cave, a opção foi obviamente arrumada na gaveta das ironias e das paródias. Allen, pelo contrário, viu-se debaixo de uma chuva de insultos dos campos feministas e ainda levou com acusações de racismo. A ironia, demasiado misturada com os próprios códigos vigentes, perdeu-se completamente e, em vez de resultar num tom jocoso e crítico, pareceu apenas conformado e em conformidade com aquilo que ditam as partilhas de vídeos nas redes sociais.

Na verdade, a interpretação de que Hard out here seria uma canção atentatória da condição feminina apenas prova o braço-de-ferro com vencedor anunciado entre imagem e texto. Enquanto os rabos se abanam, Lily Allen canta que quem a quiser encontrar deve procurar no estúdio e não na cozinha, e que ela própria não precisa de estar a abanar o traseiro porque uns centímetros mais acima tem um cérebro. E segue apontando o dedo à desigualdade: “If I told you about my sex life, you’d call me a slut / When boys be talking about their bitches, no one’s making a fuss”. A estocada final, no refrão é clara: “Forget your balls and grow a pair of tits / It’s hard out here for a bitch”. Mas poucos a seguiram nesse exercício de se colocarem no lugar de uma mulher no mundo pop. Era mais fácil atirar a primeira pedra, mesmo que a letra refira textualmente tratar-se de sarcasmo. Lily Allen joga permanentemente com essas reacções impulsivas para conseguir o efeito pretendido. Não o faz pregando para os convertidos. Nem recorre, como o fez Beyoncé, à escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie para caucionar o seu feminismo. A sua natureza é da provocação.

O tom confessional

Lily Allen não tem um pingo de ingenuidade. Sabe ao que vem. Em 2010, quando anunciou uma reforma antecipada e se dedicou por uns tempos à maternidade em dose dupla, fê-lo precisamente porque não estava disposta a sujeitar-se a uma indústria de regras extremamente agressivas e a ter de lidar em permanência com a sanha doentia dos tablóides. Quis sossego, menos exposição, mais espaço para a família. Mas assim que preparou o regresso percebeu que a indústria não se tornara milagrosamente mais suave, aceitando contra vontade continuar a usar o nome Lily Allen por oposição a Lily Cooper – o nome que adoptou após o casamento com Sam Cooper.

Por outro lado, de que lhe valeria língua afiada e provocação inteligente se ninguém estivesse disponível para uma tal senhora Cooper, recém-chegada a esta história da música pop? O próprio vídeo de Hard out here acabou por funcionar como forma de ultrapassar as resistências da editora a que tivesse o carimbo oficial de single quando, no fundo, repete por 72 vezes – contagem da própria – a palavra “bitch”. Nenhuma rádio iria na cantiga. Nem nessa, nem em Sheezus, que as rádios também não se encantam com a palavra “period” se significar ciclo menstrual, disse à Rolling Stone. Ou seja, se mais razões houvesse para um tema chamado Hard out here, estavam aqui.

De resto, não é apenas de períodos que Lily Allen fala sem se engasgar, desviar o olhar ou ficar de faces rosáceas. Já em Not Fair, do brilhante It’s Not Me, It’s You, cantava acerca das frustrações com a ejaculação precoce de um ex-namorado. A intimidade invade despudoradamente as canções de Lily Allen, dando-lhe uma vida mundana que a música pop costuma falhar na sua tentativa de representar uma perfeição de vitrina, evitando temáticas incómodas ou demasiado expostas. Percebe-se, por isso, a irritação da cantora com os paparazzi na sua vida. Alguém que abre a porta do quarto ou da casa-de-banho nas canções não está propriamente a esconder-se do mundo ou a deixar muito por revelar. Mas também não está a convidar ninguém a entrar. Percebe-se também, por isso, que tenha escrito URL Badman, de Sheezus, como resposta a todo o criticismo que a elege com alvo vindo de bloggers atrás de um computador, de um blogue e de um pseudónimo. Allen faz tudo às claras, com as armas à vista e sem um escudo que a proteja.

A renúncia à ditadura do politicamente correcto na pop acompanha-a desde o início. Já em 2006, quando a cantora repentinamente se tornou uma figura de destaque na música britânica com uma belíssima canção estival chamada Smile, aquilo que lhe ia na voz era o contentamento vingativo de ser abordada por um namorado que a traíra e a quem, perante a tentativa desesperada de reatar a relação por parte dele, ela sorria em doses iguais de saudável amor-próprio e prazer na humilhação alheia. Inteiramente humano, universal, mas sem a projecção de qualidades inatacáveis com que a maioria pinta os seus versos. Não é de modelo que se trata, mas de uma entre iguais. Em cada um dos três álbuns, aliás, esse lado confessional e sem maquilhagem de Allen é um dos seus factores de irresistível atracção.

De pouco valeria esta postura, no entanto, se as canções de Lily Allen não fossem criações absolutamente refinadas. E são-no de forma invariável, com uma eficácia melódica constante e uma argúcia espantosa na fuga a quaisquer armadilhas de lugares comuns. O caso extremo foi mesmo It’s Not Me, It’s You, uma colecção de canções que permanece hoje como uma das obras-primas da pop dos últimos anos. Sheezus segue de perto esse exemplo, mas sem a mesma diversidade de registos – foram-se o funk desbotado, o rock clássico sem pretensões de arena, a pop de todas as maneiras e feitios – em que cada canção era uma peça autónoma mas que elevava o todo. Sheezus é mais homogéneo, não se desvia mais do que uns milímetros de uma pop dançável (entre country/cajun e Wham! em As Long as I Got You, de fragrância africana em Life for Me) mas, curiosamente, nunca entra em disputas territoriais com as suas colegas de profissão. Talvez porque, na verdade, Lily Allen esteja mesmo pouco interessada em destronar seja quem for. Quer apenas fazer boas canções e, pelo caminho, semear um pouco de caos e de provocação. 

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Lily Allen nunca foi de se esconder atrás das palavras. Pelo contrário, atira-as o mais que pode à sua frente, para ter a certeza de que, quando passar, terá olhares a seguir-lhe os passos. Mas isso implica igualmente que o seu fulgor pop viaje carregado de pequenos explosivos e não se limite a montar umas quantas frases que rimem e pareçam bonitinhas em conjunto. As rimas, ainda assim, não são irrelevantes. Segundo a cantora, Sheezus, antes de qualquer boutade atirada na direcção de Kanye West (cujo último álbum o proclama como Yeezus), é uma pequena invenção à medida para fechar um verso que é conveniente fazer par com “divas”. Até porque Allen não parece interessada em parodiar a megalomania desenfreada de Kanye West (e o facto de este crer piamente que não respira o mesmo ar nauseabundo que os restantes mortais), nem em trucidar a pressão mediática e autoinfligida que existe para a criação de um campeonato semelhante de deificação no feminino. Dá a ideia de estar convencida de que esta megalomania concorre mais para sintoma do que vai mal no mundo pop do que para diagnóstico final de narcisismo de acordo com os critérios definidos em qualquer prontuário médico.

Lily Allen garante até que mandou recado a Kanye West a avisar que o título é respeitoso e não uma ridicularização em forma de facadinha pelas costas. E quando chama Lady Gaga, Beyoncé, Lorde ou Rihanna para a letra de Sheezus, o tema de abertura, Allen diz estar a protestar contra esta prática virtual de enfiar cantoras numa imaginária luta na lama pelo simples facto de partilharem o espaço pop e, tão simples quanto isso, um ciclo menstrual. “Periods, we all get periods / Every month, that’s what the theory is” canta antes de aventar que Ri-Ri (Rihanna) não tem medo do rugido de Katy Perry (a propósito do single Roar - rugido) e que a novata Lorde “ain’t one to fuck with when she’s only on her debut”. Quando termina o refrão e reclama a coroa – depois de passar por Lady Gaga comentando que se a rapariga está disposta a morrer pela sua arte, então deve mesmo ser uma mártir –, a menor das preocupações de Lily Allen deverá ser a probabilidade de enfurecer quaisquer comunidades religiosas que se sintam ultrajadas com a sugestão de uma figura feminina à imagem de Jesus.

Esse ringue mental a que Lily Allen se refere passa, em grande parte, pela inevitabilidade das comparações que logo começam a pingar assim que se ouve o primeiro single (dela ou de qualquer uma das outras cantoras que nomeia). “I’m ready for all the comparisons / I think it’s dumb and it’s embarrassing”, desabafa ainda em Sheezus. Mas Allen não ignora que estas batalhas imaginárias radicam igualmente numa hiper sexualização da pop actual. Foi, na verdade, esse facto que a levou a escolher um vídeo para Hard out here, que era só rabos a abanarem-se, a serem açoitados e pouco mais. Nick Cave fizera algo semelhante há alguns anos, embora mais comedido, quando pediu a John Hillcoat que lhe realizasse um teledisco para Bring it on a partir do maior cliché então existente na linha de montagem de vídeos. No caso de Cave, a opção foi obviamente arrumada na gaveta das ironias e das paródias. Allen, pelo contrário, viu-se debaixo de uma chuva de insultos dos campos feministas e ainda levou com acusações de racismo. A ironia, demasiado misturada com os próprios códigos vigentes, perdeu-se completamente e, em vez de resultar num tom jocoso e crítico, pareceu apenas conformado e em conformidade com aquilo que ditam as partilhas de vídeos nas redes sociais.

Na verdade, a interpretação de que Hard out here seria uma canção atentatória da condição feminina apenas prova o braço-de-ferro com vencedor anunciado entre imagem e texto. Enquanto os rabos se abanam, Lily Allen canta que quem a quiser encontrar deve procurar no estúdio e não na cozinha, e que ela própria não precisa de estar a abanar o traseiro porque uns centímetros mais acima tem um cérebro. E segue apontando o dedo à desigualdade: “If I told you about my sex life, you’d call me a slut / When boys be talking about their bitches, no one’s making a fuss”. A estocada final, no refrão é clara: “Forget your balls and grow a pair of tits / It’s hard out here for a bitch”. Mas poucos a seguiram nesse exercício de se colocarem no lugar de uma mulher no mundo pop. Era mais fácil atirar a primeira pedra, mesmo que a letra refira textualmente tratar-se de sarcasmo. Lily Allen joga permanentemente com essas reacções impulsivas para conseguir o efeito pretendido. Não o faz pregando para os convertidos. Nem recorre, como o fez Beyoncé, à escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie para caucionar o seu feminismo. A sua natureza é da provocação.

O tom confessional

Lily Allen não tem um pingo de ingenuidade. Sabe ao que vem. Em 2010, quando anunciou uma reforma antecipada e se dedicou por uns tempos à maternidade em dose dupla, fê-lo precisamente porque não estava disposta a sujeitar-se a uma indústria de regras extremamente agressivas e a ter de lidar em permanência com a sanha doentia dos tablóides. Quis sossego, menos exposição, mais espaço para a família. Mas assim que preparou o regresso percebeu que a indústria não se tornara milagrosamente mais suave, aceitando contra vontade continuar a usar o nome Lily Allen por oposição a Lily Cooper – o nome que adoptou após o casamento com Sam Cooper.

Por outro lado, de que lhe valeria língua afiada e provocação inteligente se ninguém estivesse disponível para uma tal senhora Cooper, recém-chegada a esta história da música pop? O próprio vídeo de Hard out here acabou por funcionar como forma de ultrapassar as resistências da editora a que tivesse o carimbo oficial de single quando, no fundo, repete por 72 vezes – contagem da própria – a palavra “bitch”. Nenhuma rádio iria na cantiga. Nem nessa, nem em Sheezus, que as rádios também não se encantam com a palavra “period” se significar ciclo menstrual, disse à Rolling Stone. Ou seja, se mais razões houvesse para um tema chamado Hard out here, estavam aqui.

De resto, não é apenas de períodos que Lily Allen fala sem se engasgar, desviar o olhar ou ficar de faces rosáceas. Já em Not Fair, do brilhante It’s Not Me, It’s You, cantava acerca das frustrações com a ejaculação precoce de um ex-namorado. A intimidade invade despudoradamente as canções de Lily Allen, dando-lhe uma vida mundana que a música pop costuma falhar na sua tentativa de representar uma perfeição de vitrina, evitando temáticas incómodas ou demasiado expostas. Percebe-se, por isso, a irritação da cantora com os paparazzi na sua vida. Alguém que abre a porta do quarto ou da casa-de-banho nas canções não está propriamente a esconder-se do mundo ou a deixar muito por revelar. Mas também não está a convidar ninguém a entrar. Percebe-se também, por isso, que tenha escrito URL Badman, de Sheezus, como resposta a todo o criticismo que a elege com alvo vindo de bloggers atrás de um computador, de um blogue e de um pseudónimo. Allen faz tudo às claras, com as armas à vista e sem um escudo que a proteja.

A renúncia à ditadura do politicamente correcto na pop acompanha-a desde o início. Já em 2006, quando a cantora repentinamente se tornou uma figura de destaque na música britânica com uma belíssima canção estival chamada Smile, aquilo que lhe ia na voz era o contentamento vingativo de ser abordada por um namorado que a traíra e a quem, perante a tentativa desesperada de reatar a relação por parte dele, ela sorria em doses iguais de saudável amor-próprio e prazer na humilhação alheia. Inteiramente humano, universal, mas sem a projecção de qualidades inatacáveis com que a maioria pinta os seus versos. Não é de modelo que se trata, mas de uma entre iguais. Em cada um dos três álbuns, aliás, esse lado confessional e sem maquilhagem de Allen é um dos seus factores de irresistível atracção.

De pouco valeria esta postura, no entanto, se as canções de Lily Allen não fossem criações absolutamente refinadas. E são-no de forma invariável, com uma eficácia melódica constante e uma argúcia espantosa na fuga a quaisquer armadilhas de lugares comuns. O caso extremo foi mesmo It’s Not Me, It’s You, uma colecção de canções que permanece hoje como uma das obras-primas da pop dos últimos anos. Sheezus segue de perto esse exemplo, mas sem a mesma diversidade de registos – foram-se o funk desbotado, o rock clássico sem pretensões de arena, a pop de todas as maneiras e feitios – em que cada canção era uma peça autónoma mas que elevava o todo. Sheezus é mais homogéneo, não se desvia mais do que uns milímetros de uma pop dançável (entre country/cajun e Wham! em As Long as I Got You, de fragrância africana em Life for Me) mas, curiosamente, nunca entra em disputas territoriais com as suas colegas de profissão. Talvez porque, na verdade, Lily Allen esteja mesmo pouco interessada em destronar seja quem for. Quer apenas fazer boas canções e, pelo caminho, semear um pouco de caos e de provocação. 

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Lily Allen
Sheezus
Parlophon