O futuro da democracia está numa escola "sem esquinas"

Chama-se Livro Livre e é um projecto que está a começar agora para levar o 25 de Abril a crianças de todo o país, durante todo o ano. As crianças são convidadas a preencher as páginas com histórias de familiares e conhecidos que viveram a Revolução dos Cravos.

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O conceito é o de um livro quase em branco, em que o leitor é convidado a participar na obra como co-autor. O público-alvo são as crianças, que devem preencher o livro com desenhos, testemunhos de pessoas mais velhas, fotografias, recortes e tudo mais que conseguirem recolher sobre o derrube da ditadura e a luta pela democracia.

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O conceito é o de um livro quase em branco, em que o leitor é convidado a participar na obra como co-autor. O público-alvo são as crianças, que devem preencher o livro com desenhos, testemunhos de pessoas mais velhas, fotografias, recortes e tudo mais que conseguirem recolher sobre o derrube da ditadura e a luta pela democracia.

O livro, uma iniciativa da editora Lupa para comemorar os 40 anos do 25 de Abril, contém breves enquadramentos históricos e algumas ilustrações, mas o objectivo é mesmo estimular a criatividade das crianças, apelando ao espírito de liberdade e sensibilizando para a importância histórica do 25 de Abril e de todas as conquistas que a revolução permitiu. Os mais pequenos são incentivados a resgatar as memórias de quem viveu a ditadura e a transição para a democracia e a registar essas experiências. O projecto envolve também os mais velhos e leva-os a reflectir sobre a importância de viver em liberdade.

A parte mais “séria” do livro ficou a cargo de Francisco Bairrão Ruivo. Doutorado em Setembro de 2013, o historiador explicou ao PÚBLICO que a ideia surgiu precisamente depois de ter defendido a sua tese de doutoramento, em conversa com Danuta Wojciechowska, conhecida de longa data e directora de criação na Lupa. O historiador, que até agora sempre trabalhou no meio académico e na área da investigação, contou que o principal desafio do Livro Livre foi escrever os enquadramentos com rigor histórico, mas de uma forma que as crianças pudessem compreender. “Ainda assim, tive sempre a preocupação de não escrever de forma simplista, infantil, ou mesmo paternalista”, explica. O historiador teve oportunidade de ver já alguns livros preenchidos e considera particularmente interessante a parte das entrevistas que as crianças têm de fazer aos mais velhos. “Para mim, enquanto historiador, é muito interessante ver o que as pessoas transmitem e o que realçam sobre a revolução.”

Histórias “livres”

O Tomás Silva tem 10 anos e vive em Santo Antão do Tojal, Loures. Foi uma das crianças que aceitaram o desafio de preencher o Livro Livre com as suas investigações sobre o 25 de Abril. Entrevistou o senhor Rafael Galego, que tinha 23 anos em 1974. O entrevistado residia, na altura, no Bairro do Bom Sucesso em Alverca e começou a ter actividade política aos 15 anos. Confessa que, há 40 anos atrás, vivia atormentado com a possibilidade de ser mobilizado para a guerra colonial. A polícia de Salazar era, incontornavelmente, um dos mais repressivos instrumentos da ditadura, sobretudo para os que secretamente se opunham à ditadura. “A PIDE seguia as pessoas de uma maneira seleccionada, ou seja, fazia a vigilância visual, censura à correspondência, vigilância aos telefones e seguia as denúncias de vizinhos, ‘os bufos’” mas, ainda assim, havia quem arranjasse maneira de contornar a falta de liberdade, revelou Rafael Galego ao Tomás. “Nesse tempo utilizávamos um subterfúgio que eram as reuniões a propósito de um tema, como ver um filme ou uma peça de teatro. Chamávamos a isso mesas redondas, que era uma forma de estabelecermos a discussão, mas era discreta.”

O João Barateiro participou no concurso da Biblioteca de Vila Velha de Ródão. Entrevistou o avô Jaime que, em 1954, partiu para Angola à procura de emprego e de melhores condições de vida. Jaime regressou a Portugal em 1961, quando sentiu que a tensão entre Portugal e Angola estava a intensificar-se. Quis fugir à guerra colonial, mas contou ao neto que os tempos em Luanda (capital angolana) deixaram saudades. “Quando o meu avô fala daqueles tempos, sempre se recorda com muita saudade”, conta João no livro. “Arranjou amigos, colegas, camaradas e trabalho… viviam intensamente o dia-a-dia. Tinham à disposição coisas que aqui no “Puto” [Portugal] não tinham… Fruta tropical à disposição e marisco a bom preço.” João contou ainda que os avós voltaram sem posses, mas também “sem sequelas na alma”. Restou somente a “eterna esperança de lá voltar um dia”.

A pequena Madalena Brandão, de 10 anos, é aluna da Escola Básica do 1.º ciclo com Jardim-de-infância de S. José, em Lisboa, e quis preencher uma página do seu livro livre com um poema sobre a liberdade. “A liberdade de aquele dia/Quem diria/toda a gente livre e feliz./Agora pensa-se como quem diz:/liberdade é viver.”

A quatro mãos

A Biblioteca Júlio Batista Martins de Vila Velha do Ródão (Castelo Branco) encontrou no Livro Livre uma oportunidade para celebrar Abril. “Encomendámos 40 livros e abrimos um concurso para crianças e jovens dos 9 aos 15 anos”, explica a bibliotecária Graça Batista. Os livros foram distribuídos gratuitamente pelas crianças da freguesia como forma de as motivar para o concurso. “Só impusemos uma condição: o livro tinha de ser feito a pares, isto é, uma criança e um adulto, que podia ser familiar ou não.” O objectivo, diz, era envolver toda a comunidade e promover a partilha de experiências e o diálogo intergeracional. Os livros foram avaliados por um júri e os dez melhores trabalhos seleccionados. Os respectivos autores foram depois chamados a falar sobre as suas investigações e propostas para o futuro. “O director da escola da freguesia fazia parte do júri e ficou muito interessado nas propostas das crianças para a escola. Eram muito pertinentes e bem fundamentadas.” Graça Batista contou ainda algumas ideias mais ousadas para o futuro em democracia como a de “um menino que desenhou uma escola redonda, sem esquinas para todos se verem, e com muitas janelas”.

A bibliotecária salienta ainda o entusiasmo das crianças na construção dos livros. Diz que todos andavam muito empenhados nas investigações e levavam o trabalho muito a sério. “Nem queriam revelar as fontes! Um menino disse-me que tinha descoberto um senhor na freguesia que fazia parte da Mocidade Portuguesa mas não queria revelar quem era.” Estas e outras histórias vão estar agora disponíveis na Biblioteca de Vila Velha de Ródão, onde os trabalhos das crianças serão expostos. “Vamos também digitalizar alguns trabalhos e inclui-los na nossa biblioteca digital”, diz Graça Batista, uma vez que representam trechos valiosos “da história da comunidade”.

Muitas outras histórias, fotografias e desenhos estão e estarão registados no Livro Livre pela mão das crianças portuguesas. O livro está disponível um pouco por todo o país através das bibliotecas nacionais, mas as escolas têm sido entidades igualmente importantes na sua divulgação e sobretudo no acompanhamento das crianças ao longo da “construção” das histórias.

Diálogo de gerações

Danuta Wojciechowska, uma das caras do Livro Livre, explica que o objectivo é que a construção dos livros continue daqui em diante. “Os 40 anos do 25 de Abril comemoram-se ao longo do ano, não só num dia”, lembra Danuta. A ilustradora explica que o projecto se encontra ainda numa fase “piloto” e que só daqui para a frente será possível avaliar a adesão. Ainda assim, não deixa de destacar a agradável surpresa que teve ao perceber que o livro tem sido uma importante plataforma de diálogo entre os mais pequenos e os mais velhos. “As crianças não se lembram de fazer perguntas aos pais e aos avós sobre estes temas mas, com o livro, têm descoberto coisas que nunca imaginaram”, conta. Para Danuta, o Livro Livre “é a recolha da herança do passado e a visão da cidadania do futuro” em páginas escritas pelos mais pequenos.

Texto editado por Andrea Cunha Freitas