Sucessos da democracia portuguesa não são um acaso

Robert Fishman, sociólogo e cientista político norte-americano, estuda há anos a democracia, em particular em Portugal e Espanha. Neste ensaio, faz o diagnóstico, 40 anos depois: a democracia portuguesa "está bem enraizada", não está "totalmente satisfeita consigo própria", não tem "excesso de confiança" nem "sentido de plena realização". E isso é bom

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A revolução que se iniciou há quarenta anos foi uma revolução simultaneamente democrática e social; foi uma plataforma para grande criatividade e progresso que ainda hoje se mantém – mesmo em tempos difíceis. O progresso e a inclusão social que o 25 de Abril tornou possíveis tiveram efeitos directos em Portugal, mas a Revolução dos Cravos também deixou marcas profundas a nível global. Portugal possibilitou o alastrar global da democracia, por razões que ainda não são suficientemente reconhecidas. Hoje, todavia, os efeitos no próprio Portugal merecem a maior atenção.

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A revolução que se iniciou há quarenta anos foi uma revolução simultaneamente democrática e social; foi uma plataforma para grande criatividade e progresso que ainda hoje se mantém – mesmo em tempos difíceis. O progresso e a inclusão social que o 25 de Abril tornou possíveis tiveram efeitos directos em Portugal, mas a Revolução dos Cravos também deixou marcas profundas a nível global. Portugal possibilitou o alastrar global da democracia, por razões que ainda não são suficientemente reconhecidas. Hoje, todavia, os efeitos no próprio Portugal merecem a maior atenção.

A Revolução dos Cravos mudou o país com extraordinária rapidez e profundidade – apesar dos problemas e dos desafios que obviamente continuaram a existir, muitos dos quais em resultado das sombras lançadas pelo atraso do passado. Afinal, antes de 1974 Portugal era o país mais pobre e atrasado da Europa Ocidental. Mas, após o 25 de Abril, em certos aspectos Portugal tornou-se o país do Sul da Europa com maior sucesso a nível social. A participação das mulheres na força de trabalho e nas universidades, uma importantíssima marca de progresso humano, aumentou rapidamente após o 25 de Abril. Portugal tornou-se rapidamente o único país do Sul da Europa em que a presença de mulheres na força laboral era muito mais elevada do que a média europeia. Muitas outras formas de progresso social e inclusão tornaram-se cada vez mais evidentes com o passar do tempo. A incorporação, em larga medida bem-sucedida, de imigrantes de vários continentes foi recentemente reconhecida através de dados comparativos que mostram que Portugal se encontra apenas atrás da Suécia no que se refere às políticas públicas de inclusão de imigrantes.

Numa pesquisa recente, eu e um colega norte-americano percebemos que as preferências culturais dos cidadãos portugueses nascidos e educados após o 25 de Abril são muito semelhantes aos da mesma geração na Dinamarca e na Finlândia, mas muito diferentes dos do resto do Sul da Europa. Em democracia, os jovens portugueses desenvolveram gostos musicais “omnívoros”, um sinal claro de competências culturais e tolerância que são muito menos habituais em outros países do Sul da Europa. Eu e um ilustre cientista social português descobrimos resultados semelhantes num estudo de certas formas de práticas de cidadania. Também neste estudo, os resultados portugueses revelaram-se muito sólidos – em especial para os nascidos depois de 1974. Estes resultados são parcialmente explicados por práticas no sistema educativo. Simultaneamente, os estudos da PISA mostram cada vez mais que Portugal tem maior sucesso do que os seus pares da Europa do Sul em vários indicadores educativos mais convencionais.   

Estes êxitos não são um acaso. Pesquisas no campo da educação mostram os benefícios da abordagem de ensino centrada no estudante. As práticas educativas implementadas após o 25 de Abril eram menos hierárquicas e mais centradas no estudante do que no resto do Sul da Europa – com resultados extremamente positivos. Demorou algum tempo até todos os benefícios desta abordagem serem totalmente evidentes, precisamente devido à sombra lançada pelo anterior atraso. Muitos estudantes portugueses nos anos após 1974 cresceram em lares cujos pais tinham tido oportunidades de estudo limitadas, devido ao acesso universal à escolaridade ter sido implementado muito tarde.

No campo económico, o progresso de Portugal nos 25 anos a seguir a 1975 e antes da adesão ao euro foi extraordinário. O nível de vida aumentou mais do que no resto do Sul da Europa, a produtividade também cresceu, juntamente com a inovação nas empresas. O desemprego estava entre os mais baixos da Europa. Com a introdução do euro em 1999, o país perdeu a sua independência monetária e iniciou-se um período de resultados económicos desapontadores. Mas exactamente antes de a crise nos mercados de crédito ter obrigado o país a pedir ajuda internacional em 2011, houve vários sinais muito positivos, incluindo o crescimento das exportações e de indicadores de inovação nas empresas. E enquanto lida com a crise económica desde 2008, Portugal parace ser um de muito poucos países que têm conseguido diminuir as desigualdades em vez de as aumentar, pelo menos de acordo com os dados internacionais mais recentemente disponíveis.

Apesar disso, este 25 de Abril ocorre num contexto em que existem também muitos motivos para tristeza. A crise económica e a austeridade tiveram muitos custos para Portugal e a sua democracia. Mas neste caso Portugal não está sozinho. A crise económica e a austeridade em muitos países da periferia da Europa foram originadas por dinâmicas e forças sistémicas e poderosas que atravessam as fronteiras nacionais. Os desafios que se apresentam na actualidade são muito concretos, mas por comparação a situação é ainda pior em outros países do Sul da Europa. O 25 de Abril forneceu a Portugal forças pouco habituais relacionadas com os princípios de inclusão social e participação democrática. A maioria dos líderes políticos é em alguma medida influenciada pelas atitudes da população e por uma forma de entender a política que têm as suas origens em Abril. A população é fortemente a favor de esforços governamentais para limitar as desigualdades e a forma predominante de entender a política toma como adquirido a legitimidade e a importância das vozes discordantes. Isto instila níveis de enraizamento na democracia portuguesa e incita os líderes políticos a ouvir as preocupações dos cidadãos – uma tendência saudável em democracia.

Democracias, como a portuguesa, que estão bem enraizadas, que olham para além da simples existência de instituições representativas e que se preocupam com a forma como essas instituições – e outras formas de expressão dos cidadãos – servem o objectivo de inclusão social e bem-estar humano, constituem sempre processos em constante evolução, à procura de problemas que possam ser enfrentados. Não se pode confiar inteiramente numa democracia que esteja totalmente satisfeita consigo própria. Esse excesso de confiança e sentido de plena realização é um problema que Portugal não tem.

Os cidadãos portugueses, os partidos portugueses e os especialistas portugueses discordam sobre como melhor resolver os maiores desafios que o país enfrenta – o que é tão normal como apropriado numa democracia. Mas o que muitas vezes não se reconhece é o quanto a maioria dos cidadãos portugueses e os líderes políticos têm em comum. Na década de 1990 o Estado providência cresceu na mesma proporção do produto interno bruto, com governos tanto de centro-esquerda como de centro-direita, exactamente o oposto do que sucedeu em Espanha. Hoje, políticos da maioria dos quadrantes percebem que mesmo as vozes que discordam fazem parte do grande diálogo da democracia. O 25 de Abril criou uma democracia pouco habitual, com uma grande preocupação no que toca à redução das desigualdades e à promoção de inclusão social, e na qual os líderes políticos estão mais disponíveis para ouvir as vozes de descontentamento nas ruas do que os seus homólogos em muitas outras democracias. Este feito afirma-se como sendo de um imenso significado histórico.

Professor de Sociologia da Universidade de Notre Dame, EUA. Robert Fishman está a escrever um livro sobre a prática da democracia e inclusão política (ou a sua ausência) em Portugal e Espanha