A vitória do novo sobre o velho

Tempos houve em que os mercados eram os da Ribeira ou do Bolhão...

Como foi igualmente um milagre, tudo aquilo que provocou: a vitória do novo sobre o velho, da liberdade sobre o medo. A vitória do movimento sobre a imobilidade, da responsabilidade individual sobre a menoridade cívica. No fundo, a vitória de cada um de nós sobre um Estado repressivo, nas mãos de uma corja mais ou menos bem-apessoada.

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Como foi igualmente um milagre, tudo aquilo que provocou: a vitória do novo sobre o velho, da liberdade sobre o medo. A vitória do movimento sobre a imobilidade, da responsabilidade individual sobre a menoridade cívica. No fundo, a vitória de cada um de nós sobre um Estado repressivo, nas mãos de uma corja mais ou menos bem-apessoada.

Mas parece evidente que os milagres não transformam tudo o que existia anteriormente. Embora a Bíblia não se debruce sobre este aspecto, estou em crer que o cego que passou a ver ou o paralítico que passou a andar não deixaram de ser as pessoas mesquinhas ou meramente limitadas que eram antes dos ditos milagres acontecerem. Só pediram para ver ou andar e o seu desejo foi-lhes concedido. Quanto ao resto, ficou tudo na mesma.

Nós, portugueses, em consequência daquela redentora ópera matinal de tanques e chaimites, não deixámos, assim, de ser subservientes e timoratos. Por vezes, sensatos e inventivos. Mas, muitas vezes, manhosos e invejosos. A nossa pequenez não resultava só da proeminência da corja que vivia dela e a alimentava. Lamentavelmente, não passámos a ser frontais e ousados, ou esforçados e generosos ou, ainda, tolerantes pelo facto de a ditadura ter sido derrubada. O milagre restituiu-nos a liberdade, não nos concedeu a qualidade.

A defesa do “respeitinho” pelas autoridades e instituições e o consequente apoucamento das nossas personalidades e aspirações não era unicamente uma característica e uma consequência da ditadura. Na verdade, o princípio de que “o respeitinho é muito bonito” já tinha sido amplamente cultivado durante a 1.ª República e a Monarquia, mesmo constitucional, como forma de limitar a liberdade de expressão dos cidadãos. E, 40 anos após o milagre, pode dizer-se que esta nossa tacanhez continua a vicejar, qual erva daninha. Parece estar-nos no sangue.

Mas, felizmente, “água mole em pedra dura, tanto dá até que fura” e, hoje em dia, não precisamos de milagres para que a nossa liberdade vença a nossa pequenez. Quando, há uns meses, um comentador político afirmou, numa entrevista, “nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva”, o visado sentiu-se ofendido, institucional e pessoalmente. Como é normal num pais pequenito como é o nosso.

Queixou-se criminalmente porque desejaria que, em nome do “respeitinho”, o autor de tal afirmação pagasse caro a ousadia. E, no entanto, o Ministério Público arquivou o processo, considerando que não havia qualquer crime.

Poderia estar em causa um indelicadeza ou mesmo uma grosseria, mas, tal como o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem, reiteradamente afirmado, “a liberdade de expressão é válida não apenas para os juízos favoráveis, inofensivos ou indiferentes, mas também para os que ferem, chocam ou incomodam. Estas são as exigências do pluralismo, da tolerância e do espírito de abertura, sem os quais não há sociedade democrática. Designadamente no contexto do debate politico, as figuras públicas devem saber tolerar as palavras contundentes e a critica mordaz”.

E, por isso mesmo, considerou o Ministério Público que, mesmo entendendo que o comentador tinha pretendido “manifestar a sua desconsideração pelo desempenho politico do professor Aníbal Cavaco Silva, enquanto Presidente da República, a verdade é que não é exigível, no actual sistema político democrático, que tenha consideração por tal desempenho, sendo que a liberdade de expressão lhe permite manifestá-lo”. E, acrescentamos, não tem de o fazer com “respeitinho”.

Passados 40 anos sobre aquele dia miraculoso, o mundo em que vivemos tornou-se mil vezes mais complexo, fascinante e perigoso. Há 40 anos, por exemplo, os mercados que conhecíamos e frequentávamos eram os da Ribeira ou do Bolhão. Agora, não fazemos ideia onde se localizam os mercados de que tanto se fala e só sabemos que nós não somos mais do que uma míseras mercadorias.

E, apesar disso e por isso, continuam actuais as palavras de António Maria Fontes Pereira de Melo proferidas na Câmara dos Deputados, em Junho de 1849: “Da imprensa, não se temem senão os homens que não têm uma consciência pura, os hipócritas, as mediocridades, os tiranetes, os administradores incapazes, a polícia que fica sem ter que fazer, os que faltam aos seus deveres, aqueles, numa palavra, que têm mais a recear dos ataques da imprensa do que a aplaudirem-se dos seus elogios”.

Se valeu a pena o 25 de Abril? A pergunta é absurda, mas tem uma resposta à altura. Claro que valeu: ao menos, podemos chamar palhaços aos que nos governam e não temos medo de ir presos.

Advogado, ftmota@netcabo.pt