A voz humana

E aos 40 minutos de Obediência/Compliance, à voz do officer Daniels é dado um rosto. Explicamos assim a sensação: é como se o filme, vendo-se em apuros perante o que estava a desencadear, precisasse de fugir do seu susto; assustou-se por estar a pisar os caminhos abstractos do Mal, que são de Hitchcock ou de Lang, por exemplo, e rendeu-se ao concreto do fait-divers.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

E aos 40 minutos de Obediência/Compliance, à voz do officer Daniels é dado um rosto. Explicamos assim a sensação: é como se o filme, vendo-se em apuros perante o que estava a desencadear, precisasse de fugir do seu susto; assustou-se por estar a pisar os caminhos abstractos do Mal, que são de Hitchcock ou de Lang, por exemplo, e rendeu-se ao concreto do fait-divers.


Rewind, os 40 minutos iniciais de Obediência, de Craig Zobel... Num restaurante de fast food norte-americano, com uma manager, Sandra (Ann Dowd), em perda, personagem em busca de aprovação, toca o telefone da esquadra: Becky (Dreama Walker), uma empregada, cometeu um roubo, e o officer Daniels, a voz do lado de lá da linha, quer circunscrever a “cena do crime”, encontrar quem ali lhe possa servir para a investigação, quem possa ser os seus eyes on the ground. Sandra começa por ser o veículo adequado, porque está pronta à obediência. Mas a voz vai ter ressonância em todos os outros, que serão cúmplices na violação da intimidade de Becky.

What about her rear? Sim, Becky é interrogada, despida, fica nua debaixo do avental - depois até sem o avental (Is she shaved?) A voz vai ditando as regras de perversão e do domínio, que se alarga. O officer Daniels começa a soar como a voz interior de todos, como se concretizasse desejos secretos, pulsões: I did a bad thing, alguém diz. Fizeram todos.

Isto são os 40 minutos iniciais de Obediência. É verdade que já aí o espectador, à medida que o jogo de perversão fica mais retorcido, soltando a memória do colaboracionismo humano com os pesadelos históricos, começa também a suspeitar: o exercício não se vai aguentar com a corda assim esticada. Várias vezes a expansão pelos terrenos da abstracção dá sinais de se atemorizar - mesmo se o realizador, exemplificando com um filme anterior, Great World of Sound (2007), reivindique para si o “tema” do humano que se verga moralmente (o que de resto está explícito no título: Obediência). Por isso, quando ao officer Daniels é dado um rosto - não é officer, é um prankster, baseando-se o filme no que sucedeu em 2004 num McDonald''s do Kentucky, EUA (e o prankster estava por trás de outras situações ocorridas em 30 estados norte-americanos) - um pedaço razoável do mal-estar até então consolidado é aliviado: posto ao largo, volta outra vez para o exterior, sai de todos nós.

O que acaba por ser um regresso do filme aos seus próprios limites. Mesmo que pareça terminar em suspensão, como se quisesse voltar a ganhar uma perturbação perdida, Obediência (elogiado por gente respeitável, de William Friedkin a Paul Schrader passando por John Waters, que o terá considerado um dos seus favoritos de 2012), não tem capacidade de enfrentar o grande desconhecido. Refugia-se no fait-divers. De onde, na verdade, nun ca se chegara a afastar.