Em Guimarães a dança não quer perder o norte

O solo do sueco-holandês Jefta van Dinther é uma experiência radical sobre os limites perceptivo-sensoriais.

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A vibrante percussão tecno, de elevadíssima voltagem, entranha-se no corpo dos espectadores e na escuridão de breu a envolver o anfiteatro e o palco. Revela-se um vulto humano em cena. Contaminado pela batida electrónica, parece debater-se com um objecto quimérico ou consigo mesmo.

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A vibrante percussão tecno, de elevadíssima voltagem, entranha-se no corpo dos espectadores e na escuridão de breu a envolver o anfiteatro e o palco. Revela-se um vulto humano em cena. Contaminado pela batida electrónica, parece debater-se com um objecto quimérico ou consigo mesmo.

Na hora seguinte, a aposta será obliterar a imagem do intérprete num desafiante jogo com o desenho de luz (Minna Tiikkainen) e som (David Kiers): uma atmosfera psicadélica projecta-nos, em turbilhão, entre o epicentro e a periferia de um ciclone.

O solo do sueco-holandês Jefta van Dinther (n.1980) – nome em ascensão no circuito Estocolmo-Berlim-Amesterdão, prémio de dança da crítica sueca em 2013, pela sua primeira obra, Plateau Effect, para o lendário Ballet Culberg – é uma experiência radical sobre os limites perceptivo-sensoriais.

Curto-circuitados pela luz estroboscópica, movimentos espasmódicos do corpo respondem às cadências sonoras cavas, prolongando a nossa própria pulsação cardíaca. Um inquietante zunido de hélice de helicóptero ou de um insecto gigante sobrevoa-nos com ferocidade. Nos ápices de claridade, entrevemos, diante de um ciclorama branco, a silhueta a arrastar continuamente cabos eléctricos, que enrola em feixe ou iça numa roldana, ou a fazer rodopiar na obscuridade um ameaçador chicote fluorescente, como se de um dervixe do tempo contemporâneo se tratasse.

O exercício sinestésico é exímio e abre um campo associativo: a era pós-industrial tornou-nos reféns dos dispositivos tecnológicos. Mas o ambiente de alta tensão da peça é também um hábil anzol a aprisionar-nos os sentidos a um constante alerta: a intensidade do aqui e agora interfere com a viagem a outros patamares, e o identificar, neste corpo ininterruptamente triturado pela hiperestimulação nervosa e informativa, a tragédia cultural da pós-modernidade.

Num registo muito distinto O Que Fica do Que Passa, da jovem dupla Teresa Silva (n.1988) e Filipe Pereira (n.1986), é um trabalho intimista e plasticamente cuidado. Diante de uma cortina translúcida, feita com largas bandas de papel vegetal verticais ao palco, a intérprete, em silêncio, mobiliza subtilmente partes do corpo e da face. A deslocação do anel de luz sobre a cortina sugere o ciclo solar.

A cortina é içada e forma um toldo, deixando visível uma réplica em folha de alumínio. As expressões faciais, a transitar entre o espanto, o grito (mudo) e a ira, dão origem a um som que não temos a certeza de vir de dentro do corpo. A voz torna-se então num canto que se propaga, agitando a superfície prateada, e mistura-se com acordes do Prelúdio à Sesta de Um Fauno. Num brevíssimo vislumbre final, os dois intérpretes surgem em cena, transportando luxuriantes folhas de bananeira.  

Em foco, o transitório, o rasto das acções, a memória. Coroar a peça com tão solene emblema da história da dança era, porém, um repto elevado, que não tem fundamentos nos alicerces dramatúrgicos da coreografia.

A 4.ª edição do Guidance, assessorada por Rui Horta, denota a vontade de capitalizar o belíssimo legado da Guimarães 2012, superando o pós-parto da Capital da Cultura. Posiciona-se como novo pólo congregador das artes performativas a norte – e no mapa nacional e europeu.
 

O PÚBLICO viajou a convite da Associação Cultural Materiais Diversos