Tim Etchells: “Temos mais passado do que futuro, isso é um facto”

Ao longo dos anos Tim Etchells andou a escrever peças de teatro que pareciam histórias banais com as quais nos identificávamos. Ao fim de 30 anos essas histórias fazem o percurso original do novo Artista na Cidade.

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Tim Etchells Daniel Rocha

Trinta anos de criação contínua, alguma vez sentiu que parte importante do trabalho da companhia passa por terem consciência de que não podem andar em círculo?

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Trinta anos de criação contínua, alguma vez sentiu que parte importante do trabalho da companhia passa por terem consciência de que não podem andar em círculo?

Sim [risos], às vezes entramos numa espiral [discursiva] sobre performatividade e teatralidade que se é uma espécie de metáfora política, não deixa de ser reflexo do circuito fechado onde nos movemos. De qualquer forma, nunca achei que controlasse o “aqui e agora”. Trinta anos depois é interessante perceber que algumas coisas mantêm um fascínio contínuo que não desapareceu no interior de uma estratégia. E isso é uma batalha constante. Há a tendência para uma reacção que provoque que a próxima coisa seja a libertação de um processo mais elaborado, caótico e com muitas camadas, que faça com que cada espectáculo seja mais frágil, como As Festas de Amanhã ou algo mais espectacular, como Quizoolla! (apresenta-se em Novembro). Há em todos, para os intérpretes, um desafio de continuarem atentos ao que estão a fazer e não caírem num automatismo repetitivo.

Também é assim durante os ensaios?

Em As Festas de Amanhã, por exemplo, todos colaboraram nas improvisações e fizeram sugestões. Mas improvisar é muito difícil. As ideias gastam-se muito depressa. E quando a peça é mais curta, ainda mais difícil se torna. É diferente de peças onde o tempo joga a favor das diferentes energias e tempos do próprio espectáculo, como aconteceu com Quizoolla! e E à Milésima Noite (22 Março, Culturgest). A grande diferença entre As Festas de Amanhã e A Tempestade que aí vem (19 a 21 Março, Culturgest), foi, e é, o diálogo A-B, de um para outro actor - têm que reagir ao que o outro está a dizer muito rapidamente e sem mais nada em seu socorro. Em A Tempestade que aí vem, por exemplo, tudo começa com uma questão simples: contar uma história. Assim que as histórias se começam a cruzar, a própria estrutura se começa a deteriorar. As regras são menos claras do que no esquema que sustenta As Festas de Amanhã.

E são decisões colectivas?

Gosto de pensar que chegamos a uma decisão e não tanto que tomamos uma decisão. De certa forma, ninguém decide. Eu, por exemplo, sou péssimo a decidir de forma austera, e muito mais inclinado a perder seis semanas pelas várias opções. Mas também acho que sou aquele que é mais tolerante, precisamente porque os posso observar. Mas às vezes penso que deveríamos ser mais eficientes. Muitos espectáculos começam como estruturas caóticas, vagas, intuitivas e orgânicas e depois tornaram-se peças conceptualmente mais claras, ao ponto de acharmos que são tão simples que as podíamos ter feito em três semanas.

É a consciência de que a linguagem que vos define não se pode transformar numa marca?

Sim, acho que sim. E nós temos as nossas próprias expectativas. Quando se tem um passado, como se escapa a ele? Como permitir que o questionamento sobre o trabalho surja de diferentes formas? O que nos impressiona é a ansiedade que existe no público quando as nossas peças não piscam o olho ao espectador ou não começam com um “olá”.

O que é que a idade acrescentou a uma maior consciência sobre o vosso trabalho? 

Tenho 52 anos e aquilo que percebo é que quando eramos miúdos, muito do trabalho andava à volta do potencial destes corpos e naquilo em que se podiam transformar. Nesta forma fictícia de ocupar o mundo que é fazer teatro, quando se é mais velho, percebe-se que há muito menos potencial. Temos mais passado que futuro, e isso é um facto. O que pode ser feito é menos do que aquilo que já foi feito. Os intérpretes já não têm 24 anos mas ainda têm que viver as suas vidas e o trabalho é muito mais sobre equilíbrios entre o que está por vir e o que já passou do que a construção de um espaço para esse potencial surgir. Os seus corpos já contêm muita informação e experiência, não são uma tela em branco – e nunca ninguém o é – mas é menos branco do que já foi. O que reconheço como mudança foi um abrandar dos espectáculos, tornaram-se mais lentos. Se olhar para o trabalho dos anos 1990, reconheço que vivíamos num estado agitado, a fazer zapping, e cada espectáculo tinha dez ideias lá dentro. Hoje os espectáculos têm menos coisas à sua disposição e expandem-se a partir dessas “limitações” tanto quanto possível.

O corpo de que andavam à procura há 30 ou 20 anos, tornou-se, através do modo como foram ocupando o centro dos espectáculos, por exemplo, no uso dos vossos próprios nomes, no principal sujeito teatral, como se fossem intérpretes da vossa própria História?

Sim, ainda não o tinha pensado dessa forma. Chegámos ao corpo de que andávamos à procura. Há ainda outro aspecto ligado a isso: ao olhar para o trabalho que fizemos, posso gostar dele mas também posso perceber como estamos assustados por o fazermos. É um desafio, e ficamos tão interessados no desafio de fazer o que fazemos e de estar onde estamos, que só isso pode justificar o abrandamento. Tem a ver com precisarmos de estar enraizados no presente.

Continuar a fazê-lo é reclamar um território onde têm que estar por vocês e não por aquilo que esperam de vocês?

Sim. E é verdade que o uso dos nomes sublinha uma espécie de narrativa marginal à construção fictícia do espectáculo. Creio que a primeira vez que os usámos foi há dez anos, no Bloody Mess [2004], e de forma muito violenta. A Cathy [Naden] dizia ao Robin [Arthur]: “Já estava na altura de te livrares dessa cabeça de cavalo." Os actores tornaram-se, com o tempo, nestas figuras que atravessam o espectáculo porque são eles que vão gerindo o material. Isso não era claro há 15 ou 20 anos quando vivíamos num território mais ficcional. Hoje caminhamos em direcção a uma outra ideia de tempo mais ligada ao presente e a uma negociação desse presente com o próprio público. 

É também admitir que se há 30 anos imaginavam começar uma revolução a partir do palco, hoje discutem muito mais as possibilidades e limitações do dispositivo teatral? 

Sim, é verdade [risos]. Não é uma questão que se torne mais fácil de responder com o tempo, mas é nisso que penso o tempo todo. Como é que estas coisas que fazemos tocam e mudam as pessoas? Numa só questão: estou ou não, a desperdiçar (o meu, o vosso) tempo? Qualquer discussão sobre o que pode um espectáculo fazer obedece a duas forças: uma dimensão política que tem a ver com o lugar onde estamos e os problemas que nos rodeiam e outra que tem a ver com a resposta que somos capazes de dar. E quanto a esta segunda força, nos últimos dez anos tem sido dado ênfase, sobretudo no plano cultural,  a uma dimensão interactiva e de comprometimento do público, que procura uma forma menos passiva de se ser espectador, como se a participação num projecto propusesse uma relação mais activa do que sentar-se no escuro e ver um espectáculo.

Tem a ver com a imediatez que se tornou na condicionante essencial da vida?

Sim. A participação e interacção tornaram-se chavões que, na prática artística, desafiam a presença do espectador na plateia limitando-o a uma presença e uma experiência passivas. Nunca achei que o fosse. No melhor dos cenários, estas ruas de sentido único são, na verdade, extraordinários momentos de interacção precisamente porque não há botões de escape nem uma paisagem para vaguear. Mas a questão, que é política, é como se criam experiências? Não é sequer evidente que as pessoas que participam nas peças, realmente participem.

Como é que a companhia o vê?

[pausa] Não sei. Não é uma organização idílica. Acho que a natureza das colaborações depende da confiança, da democracia e de uma relação utópica. A companhia é tudo isso mas é também uma história pessoal complicada entre seis pessoas, com todas as tensões, irritações e discussões que se possam imaginar dentro das famílias. É uma relação cuidadosa e de confiança mas é também aguda, impaciente e frustrada.

Continuam juntos porque se tornaram uma família à qual não conseguem escapar?

Seja como for que a queiramos definir, é nítida uma relação de cumplicidade, por mais difícil, entediante, frustrante e irritante que possa ser ouvir, uma vez mais, a opinião de alguém. Somos todos reconhecidos à dimensão do que conseguimos, por mais doloroso que possa ser, até em termos pessoais. São 30 anos de escolha em estarmos juntos.

Já vos chamam de velhos?

É inevitável. Mas sortes destas não acontecem sempre. Mas enquanto conseguirmos dar toques com a bola sem tocar no chão…Há quem consiga trabalhar sozinho, mas com colectivos como o nosso, ou o [nova-iorquino] Wooster Group, o que se vai fazer? Fico a pensar que nunca fizemos parte do sistema económico que é o teatro. As nossas peças nunca foram apresentadas por outros e nem é algo que sequer me interesse. Que iriam fazer? Imitar-nos?

Há 30 anos conseguiam imaginar este futuro?

Acho que não. A ideia de que estaríamos a trabalhar e numa conversa contínua como a que temos, não era imaginável. Mas eu sei que nunca me imaginei a fazer outra coisa para além de arte. A longevidade e continuidade, a vitalidade e a força do grupo são algo que era inimaginável. [pausa longa] É uma surpresa porque, quando penso realmente nisso, isto aconteceu num contexto tão frágil e em circunstâncias tão específicas… podia imaginar diferentes formas de funcionamento a partir de coisas que aconteceram. Pode parecer insano e ridículo pensar que este trabalho continua a existir. E é quase impossível acreditar que, de facto, continua a existir. Acho que tenho, que temos, imensa sorte.