Obama apelou a que humanismo ímpar de Nelson Mandela entre na vida de todas as pessoas

O herói da luta anti-apartheid foi homenageado por líderes e activistas, representantes religiosos, familiares e amigos. O anfitrião, Presidente Jacob Zuma, foi apupado, frente a uma multidão e às câmaras de todo o mundo.

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Como nesse dia, em 11 de Fevereiro de 1990 – quando o caminho para a liberdade de Mandela, ao lado da mulher Winnie, foi captado pelas televisões – esta terça-feira, o mundo assistiu, quase ao minuto, à cerimónia em memória e homenagem a Nelson Mandela, no mesmo grande estádio onde o herói da luta anti-apartheid apareceu pela última vez publicamente em 2010 e foi longamente aplaudido de pé.

Agora que essa imensa luz se apagou, como disse o primeiro-ministro britânico, David Cameron, na primeira reacção à morte de Mandela, foi Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos, que pronunciou, na tribuna no estádio, algumas das frases mais emblemáticas que davam sentido à luta de Mandela.

E ao fazê-lo, este outro homem alto, primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, quase personificou o líder que profundamente admira, quando falou como Mandela falava do ideal da libertação como um ideal pelo qual estaria disposto a morrer; ou quando citou Mandela a dizer que combatia formas de dominação branca da mesma forma que combateria formas de dominação negra.

Obama emocionou as bancadas que irromperam em espontâneas ovações. Depois lançou um apelo para que o humanismo ímpar de Mandela entre na vida de todas as pessoas, enquanto cidadãos ou líderes, para que o ideal continue o seu caminho na criação de algo transformador. 

“Aprendemos tanto com ele”, disse Obama, que se referiu a Mandela como “o último grande libertador do século XX”. E acrescentou: “E podemos continuar a aprender. Ele ensinou-nos o que é possível, não só na História, mas nas nossas vidas também. Deixemos que Mandela continue a mostrar-nos que o impossível só é impossível até ser concretizado. Ele ensinou-nos que podemos escolher o mundo em que vivemos.”

Winnie e Graça Machel juntas
Como ele, também Winnie Mandela, segunda mulher de Mandela, foi especialmente ovacionada, depois de logo no início da cerimónia ela e a viúva Graça Machel terem dado um beijo, em sinal de união.

Ainda não eram seis da manhã e já havia muita gente pronta para entrar no Estádio FNB, que não chegou a encher totalmente como se esperava. Mas a festa alargou-se para fora das bancadas. Presidentes e ex-Presidentes, príncipes e outros representantes de famílias reais europeias, nomes célebres da música, do cinema ou do desporto, líderes religiosos, históricos activistas do ANC, amigos de Nelson Mandela, a viúva e a ex-mulher, as filhas e os netos, juntaram-se, e com um estádio quase cheio, cantaram o hino da nova África do Sul, criada por Mandela, um hino em quatro línguas, incluindo a do antigo opressor, o afrikaner.

No seu discurso, Barack Obama situou a sua própria eleição naquilo que ela teve de semelhante com a história da África do Sul. “Tal como a África do Sul, os Estados Unidos viveram séculos de subjugação racial”. E reconheceu que a sua eleição para Presidente só se tornou realidade porque homens, com a mesma determinação de Mandela, lutaram contra a segregação racial nos Estados Unidos. “Tal como aqui, foi preciso o sacrifício de inúmeras pessoas – conhecidas e desconhecidas – para que chegasse a aurora de um novo dia”.

Desconhecidos como os pais de Miriam, há 50 anos no Soweto. Por Mandela, mas também por eles, ela esteve na cerimónia. Os pais corriam um grande risco quando recebiam na sua casa as reuniões do proscrito movimento ANC, ou davam guarida a dirigentes na clandestinidade. Entre eles, Mandela. “Em casa, havia dois buracos no chão que os meus pais tapavam com umas grandes botas.” Miriam venera Mandela, que quando era homenageado, não se esquecia, também ele, de homenagear activistas dedicados mas que trabalhavam na sombra.

Várias vezes, dizia que a libertação do país não tinha sido uma conquista dele, mas de muitas pessoas, anónimas ou não, que se entregaram à luta do ANC.

Várias gerações de activistas
Na grande celebração da sua vida no estádio – conhecido como  Soccer City – apareceram activistas e os filhos das gerações seguintes, porque se lembram do sofrimento dos pais, ou porque eles próprios lutaram contra a opressão da minoria branca. “O triunfo de Mandela é também o vosso triunfo”, disse Barack Obama.

Este adeus em festa também foi a festa desses que sacrificaram a infância, porque os pais estavam sempre fora, e viveram a humilhação ou viram, como Miriam, aos pais a serem levados de casa pela polícia. Miriam estava lá, em Junho de 1976, na revolta do Soweto, brutalmente reprimida pela polícia que disparou sobre uma multidão de jovens. Tinha então 20 anos, hoje tem 57. “Eu protestei sempre, até ao dia em que Mandela foi libertado.”

Como nesse dia em que Mandela foi libertado, o mundo esteve nesta terça-feira a assistir à primeira das cerimónias de despedida a Mandela – antes de um último tributo com um velório de três dias em Pretória, nos edifícios do Parlamento onde Mandela tomou posse como primeiro Presidente negro, em 1994, e do funeral em Qunu, terra onde Mandela cresceu e onde desejou ser enterrado ao lado dos seus familiares e antepassados.

O mundo está a ver, disse Pippa Russ, de 22 anos, uma das raríssimas sul-africanas brancas presentes na cerimónia desta terça-feira. “Eu tinha que vir”, diz. Advinha-se que foi mais pelo sentido de dever pelo seu futuro, e do futuro do seu país. “O mundo vai estar a olhar mais agora que Mandela partiu”, continua. E vai estar a olhar mais ainda agora que viu a forma espontânea como as bancadas rejeitaram a actual liderança da África do Sul.

Vaias ao Presidente Zuma
O Presidente Jacob Zuma foi vaiado na cerimónia em que foi principal anfitrião (juntamente com a família de Mandela). “As pessoas estão descontentes e desiludidas”, diz o pai de Pippa, Mark Durr. “A frustração é crescente com a corrupção. Mandela deixou um legado fantástico de valores. Mas o ANC tem de responder por muitas das coisas que vão mal neste país, a começar pelo ensino, num terrível estado”, diz Mark Durr.

As persistentes vaias foram recebidas com surpresa por muitos sul-africanos na homenagem e despedida oficial de uma figura que encarna os valores fundadores do ANC, embora com falhas.

Todos dentro do ANC reclamam para si esses valores. Mas também os militantes do novo partido, o Economics Freedom Fighters, criado este ano por Julius Malema, que apoiou a candidatura de Jacob Zuma à liderança do ANC, e foi depois expulso (em 2012) por defender ideias extremistas e a defesa de um país onde fossem retirados direitos aos brancos.
Em vários momentos, massas compactas de jovens do ANC, nascidos já depois da liberdade, os born frees, celebraram nos corredores, em passo de corrida ou danças de grupo, espalhando cânticos revolucionários, numa celebração popular em paralelo, enquanto nas bancadas, não totalmente cheias, uma multidão de várias gerações, entoava cânticos religiosos.
Todos querem celebrar Nelson Mandela, nas t-shirts que vestem, nas capulanas com que se cobrem, nos chapéus que improvisam para se protegerem da chuva. Mas uns celebram-no na genuína esperança de que o legado sobreviva. E outros na tentativa de daí tirar benefícios. 

E há os que celebram mesmo tendo Mandela como uma referência tardia nas suas vidas. François Pienaar, que era o capitão dos Springboks, equipa de râguebi quando esta venceu o Mundial de 1995, na África do Sul, um ano depois de Mandela ser eleito Presidente. Um campeonato no qual Mandela se envolveu para unir uma recém-criada nação, a nação arco-íris, juntando brancos, negros, indianos e todas as raças à volta de um mesmo desporto e numa mesma celebração de vitória. E conseguiu, como agora conseguiu aqui. “Vai ser um dia longo de celebrações, em que passaremos das lágrimas à alegria e da alegria às lágrimas”, disse Pienaar ao PÚBLICO e a um grupo de jornalistas antes da cerimónia começar. “Espero uma montanha russa de emoções.”
 

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Como nesse dia, em 11 de Fevereiro de 1990 – quando o caminho para a liberdade de Mandela, ao lado da mulher Winnie, foi captado pelas televisões – esta terça-feira, o mundo assistiu, quase ao minuto, à cerimónia em memória e homenagem a Nelson Mandela, no mesmo grande estádio onde o herói da luta anti-apartheid apareceu pela última vez publicamente em 2010 e foi longamente aplaudido de pé.

Agora que essa imensa luz se apagou, como disse o primeiro-ministro britânico, David Cameron, na primeira reacção à morte de Mandela, foi Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos, que pronunciou, na tribuna no estádio, algumas das frases mais emblemáticas que davam sentido à luta de Mandela.

E ao fazê-lo, este outro homem alto, primeiro Presidente negro dos Estados Unidos, quase personificou o líder que profundamente admira, quando falou como Mandela falava do ideal da libertação como um ideal pelo qual estaria disposto a morrer; ou quando citou Mandela a dizer que combatia formas de dominação branca da mesma forma que combateria formas de dominação negra.

Obama emocionou as bancadas que irromperam em espontâneas ovações. Depois lançou um apelo para que o humanismo ímpar de Mandela entre na vida de todas as pessoas, enquanto cidadãos ou líderes, para que o ideal continue o seu caminho na criação de algo transformador. 

“Aprendemos tanto com ele”, disse Obama, que se referiu a Mandela como “o último grande libertador do século XX”. E acrescentou: “E podemos continuar a aprender. Ele ensinou-nos o que é possível, não só na História, mas nas nossas vidas também. Deixemos que Mandela continue a mostrar-nos que o impossível só é impossível até ser concretizado. Ele ensinou-nos que podemos escolher o mundo em que vivemos.”

Winnie e Graça Machel juntas
Como ele, também Winnie Mandela, segunda mulher de Mandela, foi especialmente ovacionada, depois de logo no início da cerimónia ela e a viúva Graça Machel terem dado um beijo, em sinal de união.

Ainda não eram seis da manhã e já havia muita gente pronta para entrar no Estádio FNB, que não chegou a encher totalmente como se esperava. Mas a festa alargou-se para fora das bancadas. Presidentes e ex-Presidentes, príncipes e outros representantes de famílias reais europeias, nomes célebres da música, do cinema ou do desporto, líderes religiosos, históricos activistas do ANC, amigos de Nelson Mandela, a viúva e a ex-mulher, as filhas e os netos, juntaram-se, e com um estádio quase cheio, cantaram o hino da nova África do Sul, criada por Mandela, um hino em quatro línguas, incluindo a do antigo opressor, o afrikaner.

No seu discurso, Barack Obama situou a sua própria eleição naquilo que ela teve de semelhante com a história da África do Sul. “Tal como a África do Sul, os Estados Unidos viveram séculos de subjugação racial”. E reconheceu que a sua eleição para Presidente só se tornou realidade porque homens, com a mesma determinação de Mandela, lutaram contra a segregação racial nos Estados Unidos. “Tal como aqui, foi preciso o sacrifício de inúmeras pessoas – conhecidas e desconhecidas – para que chegasse a aurora de um novo dia”.

Desconhecidos como os pais de Miriam, há 50 anos no Soweto. Por Mandela, mas também por eles, ela esteve na cerimónia. Os pais corriam um grande risco quando recebiam na sua casa as reuniões do proscrito movimento ANC, ou davam guarida a dirigentes na clandestinidade. Entre eles, Mandela. “Em casa, havia dois buracos no chão que os meus pais tapavam com umas grandes botas.” Miriam venera Mandela, que quando era homenageado, não se esquecia, também ele, de homenagear activistas dedicados mas que trabalhavam na sombra.

Várias vezes, dizia que a libertação do país não tinha sido uma conquista dele, mas de muitas pessoas, anónimas ou não, que se entregaram à luta do ANC.

Várias gerações de activistas
Na grande celebração da sua vida no estádio – conhecido como  Soccer City – apareceram activistas e os filhos das gerações seguintes, porque se lembram do sofrimento dos pais, ou porque eles próprios lutaram contra a opressão da minoria branca. “O triunfo de Mandela é também o vosso triunfo”, disse Barack Obama.

Este adeus em festa também foi a festa desses que sacrificaram a infância, porque os pais estavam sempre fora, e viveram a humilhação ou viram, como Miriam, aos pais a serem levados de casa pela polícia. Miriam estava lá, em Junho de 1976, na revolta do Soweto, brutalmente reprimida pela polícia que disparou sobre uma multidão de jovens. Tinha então 20 anos, hoje tem 57. “Eu protestei sempre, até ao dia em que Mandela foi libertado.”

Como nesse dia em que Mandela foi libertado, o mundo esteve nesta terça-feira a assistir à primeira das cerimónias de despedida a Mandela – antes de um último tributo com um velório de três dias em Pretória, nos edifícios do Parlamento onde Mandela tomou posse como primeiro Presidente negro, em 1994, e do funeral em Qunu, terra onde Mandela cresceu e onde desejou ser enterrado ao lado dos seus familiares e antepassados.

O mundo está a ver, disse Pippa Russ, de 22 anos, uma das raríssimas sul-africanas brancas presentes na cerimónia desta terça-feira. “Eu tinha que vir”, diz. Advinha-se que foi mais pelo sentido de dever pelo seu futuro, e do futuro do seu país. “O mundo vai estar a olhar mais agora que Mandela partiu”, continua. E vai estar a olhar mais ainda agora que viu a forma espontânea como as bancadas rejeitaram a actual liderança da África do Sul.

Vaias ao Presidente Zuma
O Presidente Jacob Zuma foi vaiado na cerimónia em que foi principal anfitrião (juntamente com a família de Mandela). “As pessoas estão descontentes e desiludidas”, diz o pai de Pippa, Mark Durr. “A frustração é crescente com a corrupção. Mandela deixou um legado fantástico de valores. Mas o ANC tem de responder por muitas das coisas que vão mal neste país, a começar pelo ensino, num terrível estado”, diz Mark Durr.

As persistentes vaias foram recebidas com surpresa por muitos sul-africanos na homenagem e despedida oficial de uma figura que encarna os valores fundadores do ANC, embora com falhas.

Todos dentro do ANC reclamam para si esses valores. Mas também os militantes do novo partido, o Economics Freedom Fighters, criado este ano por Julius Malema, que apoiou a candidatura de Jacob Zuma à liderança do ANC, e foi depois expulso (em 2012) por defender ideias extremistas e a defesa de um país onde fossem retirados direitos aos brancos.
Em vários momentos, massas compactas de jovens do ANC, nascidos já depois da liberdade, os born frees, celebraram nos corredores, em passo de corrida ou danças de grupo, espalhando cânticos revolucionários, numa celebração popular em paralelo, enquanto nas bancadas, não totalmente cheias, uma multidão de várias gerações, entoava cânticos religiosos.
Todos querem celebrar Nelson Mandela, nas t-shirts que vestem, nas capulanas com que se cobrem, nos chapéus que improvisam para se protegerem da chuva. Mas uns celebram-no na genuína esperança de que o legado sobreviva. E outros na tentativa de daí tirar benefícios. 

E há os que celebram mesmo tendo Mandela como uma referência tardia nas suas vidas. François Pienaar, que era o capitão dos Springboks, equipa de râguebi quando esta venceu o Mundial de 1995, na África do Sul, um ano depois de Mandela ser eleito Presidente. Um campeonato no qual Mandela se envolveu para unir uma recém-criada nação, a nação arco-íris, juntando brancos, negros, indianos e todas as raças à volta de um mesmo desporto e numa mesma celebração de vitória. E conseguiu, como agora conseguiu aqui. “Vai ser um dia longo de celebrações, em que passaremos das lágrimas à alegria e da alegria às lágrimas”, disse Pienaar ao PÚBLICO e a um grupo de jornalistas antes da cerimónia começar. “Espero uma montanha russa de emoções.”