Portugal não quis subscrever uma resolução para libertar Mandela que também defendia a luta armada

Resolução das Nações Unidas de 1987 foi vetada por Portugal, quando Cavaco era primeiro-ministro.

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Cavaco Silva defendeu que este domingo "a abstenção não é solução" Daniel Rocha

O tema regressou inesperadamente ao debate português no dia em que Mandela morreu pela mão do colunista Daniel Oliveira, num texto publicado no Expresso.

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O tema regressou inesperadamente ao debate português no dia em que Mandela morreu pela mão do colunista Daniel Oliveira, num texto publicado no Expresso.

Na altura, José Cutileiro era director político do Ministério dos Negócios Estrangeiros e foi, mais tarde, embaixador de Portugal em Pretória, tendo assistido à libertação de Mandela que, já como Presidente, faria uma visita a Portugal em 1993, quando Cavaco Silva ainda era primeiro-ministro.

“Esse voto nunca perturbou as nossas relações com a África do Sul”, acrescenta o embaixador. Que também admite que Portugal não era, na altura, um grande entusiasta de Mandela, justamente por causa da grande comunidade portuguesa que, com o seu pequeno comércio, estava na linha da frente dos confrontos entre o ANC e o regime do apartheid.

Em 1987, João de Deus Pinheiro era o recém-empossado ministro dos Negócios Estrangeiros do segundo Governo de Cavaco Silva, com Durão Barroso como secretário de Estado. O antigo ministro disse ontem a uma televisão não se lembrar do episódio. O embaixador António Monteiro, então chefe de gabinete de Durão Barroso, sublinhou ao PÚBLICO que a resolução era "a favor da luta armada e que, por causa da nossa comunidade, não podíamos apoiar", e que isso mesmo está escrito na declaração de voto portuguesa. O diplomata lembrou também que, nesse mesmo dia, Portugal votou a favor de uma resolução a pedir a libertação imediata de Mandela.

No mesmo dia 20 de Novembro em que a resolução foi aprovada na Assembleia Geral da ONU, foram votadas mais oito resoluções contra o regime do apartheid. Uma delas, que exigia a libertação “imediata e incondicional” de Mandela e dos outros presos políticos, mereceu o voto favorável da representação portuguesa, chefiada pelo embaixador Ramalho Ortigão, como, de resto, da maioria esmagadora dos países europeus. As únicas excepções foram, de novo, o Reino Unido e os EUA.

Em 1987, a política europeia de Cavaco Silva ainda não tinha feito a sua guinada europeísta em direcção aos países que estavam no centro do projecto europeu – a França e a Alemanha. O então primeiro-ministro olhava ainda com alguma desconfiança para os avanços da integração europeia e reflectia, em vários aspectos, as posições de Margaret Thatcher.

A diplomacia portuguesa estava a fazer o seu aggiornamento europeu (Portugal entrara na então Comunidade Económica Europeia a 1 de Janeiro de 1986), preservando “hábitos” antigos de alinhamento com o Reino Unido e os EUA. “Em caso de não estar em causa um interesse nacional específico, a orientação das Necessidades era, em situação de dúvida, votar com a Inglaterra”, diz também ao PÚBLICO o embaixador Seixas da Costa, que recebeu várias vezes esta orientação.

Cutileiro garante que nem sequer foi esse o caso na votação que esta sexta-feira se tornou notícia e invadiu as redes sociais. E não se admira com a abstenção generalizada dos países da Europa Ocidental, cuja política era sobretudo “não fazer ondas”.