Morreu Luna Andermatt, a mulher que ajudou a inventar a dança em Portugal

Corpo será cremado após missa na Igreja da Encarnação, em Lisboa, esta quarta-feira, às 14h30.

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Foi no programa de abertura da Companhia Portuguesa de Bailado que Francisco Brás de Oliveira, marido de Luna Andermatt, escreveu: “À loucura queremos dar equilíbrio/ ao medo queremos dar confiança e fé/ ao egoísmo opomos a dádiva de nós mesmos.” Estávamos em 1961 e no Teatro Nacional São Carlos, em Lisboa, nascia um projecto antigo de alguém que desde cedo quis “dignificar a arte da dança em Portugal”.

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Foi no programa de abertura da Companhia Portuguesa de Bailado que Francisco Brás de Oliveira, marido de Luna Andermatt, escreveu: “À loucura queremos dar equilíbrio/ ao medo queremos dar confiança e fé/ ao egoísmo opomos a dádiva de nós mesmos.” Estávamos em 1961 e no Teatro Nacional São Carlos, em Lisboa, nascia um projecto antigo de alguém que desde cedo quis “dignificar a arte da dança em Portugal”.

Luna Andermatt morreu na terça-feira, aos 87 anos, de doença prolongada. Ao PÚBLICO tinha dito, em 2010, quando a filha, Clara Andermatt, coreógrafa e bailarina, com o encenador e realizador Marco Martins, a desafiou a regressar ao palco para contar a sua história em Durações de Um Minuto, sentir que cumprira tudo a que se tinha proposto “e que a vida [lhe] podia dar”. Mas Luna, que desde jovem nunca quis deixar-se resignar pelas condições à sua volta, continuava a aparecer em palco. “É preciso encarar a realidade. Uma coisa é aceitar e a outra é resignar-se. O aceitar é o mais fácil, porque é uma escolha. Não é um disfarce. Ninguém pense que, ao disfarçar-se, se consegue iludir. É só pobreza de espírito.”

Por isso, quando em Maio deste ano a Câmara Municipal de Lisboa a homenageou com a medalha de ouro da cidade, no palco do Teatro Camões, sede da Companhia Nacional de Bailado, que fundou, em 1976, com o humor que nunca a abandonava, disse: "Se pudesse ainda dançar, saberia agradecer esta homenagem.”

E, contudo, Luna nunca deixou de dançar. Nos espectáculos da Companhia Maior, que integrou desde a sua criação, em 2011, a sua presença nunca deixava de guardar a rebeldia que não conseguia esconder-se atrás de uma educação clássica, e a elegância de quem tinha sobre o corpo um conhecimento profundo. Por isso, quando a filha Clara a quis dirigir no espectáculo Maior, estreado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no ano seguinte, Luna surpreendeu-se: "Primeiro, pôs-me descalça. E eu nunca na vida estive habituada a entrar num palco descalça, agoniava-me, parecia uma tranca que me tinham posto nos pés."

A formação de Luna começou em Portugal, nos Bailados de Margarida de Abreu, mas foi quando chegou a Londres, à Royal Ballet School, que aprendeu mais do que as posições que faziam das bailarinas seres mecanicamente perfeitos. Contou-o ao PÚBLICO: “Tinha umas pontas muito boas e fortes, sempre fui muito 'brava' em pontas. Estive lá um ano e adorei. Falava o inglês fundamental, mas vivia sôfrega de tudo quanto via. Bebia tudo quanto havia e podia, mesmo se a minha vida era escola-casa-cama. Depois das aulas, que começavam às oito da manhã, ainda tinha aulas particulares.”

Quando bailarina não era profissão
Regressou a um país onde não existia a categoria de bailarina clássica. “Tinha de escolher entre dançarina de circo ou corista. Haver bailarinas havia, mas não como profissão. Cheguei a dançar muitas vezes no São Carlos, e o meu tio, governador militar de Lisboa, que tinha um camarote permanente, via-me ali de soutien, como se fosse um biquíni da praia, e dizia à minha mãe que ela tinha de ser pai e mãe para mim, para não deixar que eu caísse no Parque Mayer.”

Foi preciso chegar a 1976 e ao convite de David Mourão Ferreira, então secretário de Estado da Cultura, para recuperar o projecto da Companhia Portuguesa de Bailado, que Luna Andermatt começou a desenhar o que viria a ser a Companhia Nacional de Bailado. Foram oito anos, ao lado de Armando Jorge, Vera Varela Cid e Pedro Risques Pereira, que formaram bailarinos, instituíram um novo modelo de apresentação que distinguia a dança dos saraus de ballet. “O ballet tornou-se assunto de Estado. Convidou-me para o Conselho Nacional de Cultura. Mas o que é que eu ia dizer no meio daquelas pessoas todas muito importantes? Era uma mesa muito longa e eu era ínfima, nem sabia o que havia de dizer para os tocar. Até me engasguei, quando chegou a minha vez de falar. Teve de ser o [pintor Nikias] Skapinakis a terminar a minha frase.”

Pressões diversas levaram-na a sair. Luna era uma mulher pouco canónica, fora e dentro das aulas. Era uma professora que gostava de circular entre as suas alunas, em exercícios na barra, de salto agulha e a sua eterna boquilha. “Tenho muito orgulho em lhes ouvir dizer que não aprenderam só a técnica do bailado, mas a expressão do próprio corpo. É preciso ser-se atento a muitas coisas ligadas à pessoa, à espiritualidade, é preciso trabalhar todos os dias, e as coisas não são feitas ao som do relógio.”

Mãe da coreógrafa Clara Andermatt, da programadora cultural Maria de Assis Swinertton e do economista Francisco de Assis, Luna Andermatt será cremada esta quarta-feira, após a missa de corpo presente às 14h30 na Igreja da Encarnação, em Lisboa.

Texto actualizado às 12h38