Em órbita

É importante explicar desde já uma coisa, antes que comecem a vir com os argumentos do costume “ai, a crítica não gosta de nada, é uma chatice”. Se estivéssemos só a falar do aspecto visual, Gravidade mereceria as cinco estrelas. Desde o Avatar de James Cameron (2009) que não tínhamos uma experiência visual que justificasse tanto o efeito de profundidade do 3D; desde o Cavalo de Turim de Béla Tarr (2010) ou o Upstream Color de Shane Carruth (2013) que não víamos tão perfeita fusão entre forma e função; desde o Wall-E de Andrew Stanton (2008) que não tínhamos um filme de estúdio que arriscasse algo de conceptualmente tão ousado. Gravidade é um tour de force visual como raramente aparece, no cinema de autor como em Hollywood; é obra de um cineasta inteligente, em perfeito controlo da sua arte, capaz de nos levar pela mão e abrir novos universos visuais, de nos agarrar sem nos largar com a pura força das suas imagens, quase todas planos longos mesmo que falseados pela tecnologia (como o extraordinário plano “impossível” de 16 minutos que abre o filme). Não é por acaso que falamos de Béla Tarr; Gravidade não podia estar mais nos antípodas do cinema do húngaro hermético, mas os extremos tocam-se no minimalismo deliberado de um filme existencial e narrativamente reduzido a duas personagens - dois astronautas que uma cadeia catastrófica de circunstâncias deixa à deriva em órbita terrestre.

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É importante explicar desde já uma coisa, antes que comecem a vir com os argumentos do costume “ai, a crítica não gosta de nada, é uma chatice”. Se estivéssemos só a falar do aspecto visual, Gravidade mereceria as cinco estrelas. Desde o Avatar de James Cameron (2009) que não tínhamos uma experiência visual que justificasse tanto o efeito de profundidade do 3D; desde o Cavalo de Turim de Béla Tarr (2010) ou o Upstream Color de Shane Carruth (2013) que não víamos tão perfeita fusão entre forma e função; desde o Wall-E de Andrew Stanton (2008) que não tínhamos um filme de estúdio que arriscasse algo de conceptualmente tão ousado. Gravidade é um tour de force visual como raramente aparece, no cinema de autor como em Hollywood; é obra de um cineasta inteligente, em perfeito controlo da sua arte, capaz de nos levar pela mão e abrir novos universos visuais, de nos agarrar sem nos largar com a pura força das suas imagens, quase todas planos longos mesmo que falseados pela tecnologia (como o extraordinário plano “impossível” de 16 minutos que abre o filme). Não é por acaso que falamos de Béla Tarr; Gravidade não podia estar mais nos antípodas do cinema do húngaro hermético, mas os extremos tocam-se no minimalismo deliberado de um filme existencial e narrativamente reduzido a duas personagens - dois astronautas que uma cadeia catastrófica de circunstâncias deixa à deriva em órbita terrestre.


Mas Gravidade não é apenas uma experiência visual, e é aí que o filme do mexicano Alfonso Cuarón perde pontos. Não por causa de Sandra Bullock (que aguenta muito bem o filme todo aos ombros) nem de George Clooney; apenas porque o que Cuarón lhes dá para trabalhar são personagens quase de linha de montagem, como se fosse preciso atribuir motivações suplementares ao instinto de sobrevivência numa situação-limite como esta, como se tivesse medo que isso não chegasse. E tal como Cameron usava em Avatar uma história convencional para ancorar o seu mundo nunca visto, também Cuarón nos quer levar onde nunca fomos a partir de um andaime básico puramente funcional mas que não resiste a sobrepor uma camada de melodrama de que o filme talvez não precisasse.

Mas é verdade: tudo o que há de menos interessante em Gravidade empalidece face à excelência das imagens. E essa excelência é muita, é mesmo imensa. Só não chega para ir ao limite - e Gravidade ergue-se acima do mundo sem conseguir manter impecável a sua órbita de cortar a respiração.