A vitória dos Orange Goblin e a catarse de Dirty Beaches na despedida do Milhões de Festa

A banda inglesa, guardiã do bom e velho rock, foi a que gerou maior entusiasmo numa noite de despedida em que também se destacaram os Dirty Beaches ou os Riding Pânico, a banda residente de um festival que acolheu diariamente, espalhados por Barcelos, cerca de quatro mil espectadores.

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A frase que citámos é de uma canção intitulada Your world will hate this. Esse mundo não estava em Barcelos, domingo, na noite desse último dia de festival em que se destacaram o catártico Dirty Beaches ou os explosivos Riding Pânico (a banda residente do festival, regressada aos discos com Homem Elefante). Já perto da meia-noite, os Orange Goblin foram recebidos e celebrados como heróis. Merecidamente. Uma cavalgada gloriosa, directa ao assunto, de uma banda que se ergue sobre os ombros de Motorhead, Stooges ou Black Sabbath para dar banda sonora a uma imensa minoria de desalinhados (o punk também passou por ali), crentes no poder regenerador da barulheira rock à antiga. "We are the filthy and the few”: até o homem enfiado em fato de tigre que assim se passeou pelo Milhões de Festa foi visto a fazer crowd surf.

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A frase que citámos é de uma canção intitulada Your world will hate this. Esse mundo não estava em Barcelos, domingo, na noite desse último dia de festival em que se destacaram o catártico Dirty Beaches ou os explosivos Riding Pânico (a banda residente do festival, regressada aos discos com Homem Elefante). Já perto da meia-noite, os Orange Goblin foram recebidos e celebrados como heróis. Merecidamente. Uma cavalgada gloriosa, directa ao assunto, de uma banda que se ergue sobre os ombros de Motorhead, Stooges ou Black Sabbath para dar banda sonora a uma imensa minoria de desalinhados (o punk também passou por ali), crentes no poder regenerador da barulheira rock à antiga. "We are the filthy and the few”: até o homem enfiado em fato de tigre que assim se passeou pelo Milhões de Festa foi visto a fazer crowd surf.

Ao início da tarde, temeu-se o pior quando, tal como pela manhã, caiu uma valente carga de água sobre a cidade. Na piscina, correu-se para a protecção oferecida pelos guarda-sóis, interromperam-se os testes de som e aguardou-se. Falava-se da necessidade de mudar os concertos marcados para o desprotegido palco Taina (o outro que o festival teve em actividade durante a tarde) para local mais abrigado. Precaução desnecessária. A chuva não mais voltou. Aparte o atraso no arranque dos concertos, tudo seguiu como programado. Ouviram-se as digressões instrumentais dos Torto e as harmonias solares dos Long Way to Alaska no palco Piscina, tocaram Evols ou BiarrooZ no Palco Taina.

A noite, no que à meteorologia diz respeito, passou-se igualmente sem surpresas. Mas não sem sobressaltos para os quatro mil (número de espectadores diários do festival) que deambularam entre o Palco Milhões e o Palco Vice instalados no Parque Fluvial de Barcelos. Sobressaltos dos bons. Estéticos. O que nos levou do concerto de Dirty Beaches, tão curto quanto turbulento, habitado por um hedonismo furioso, libertador, às febris explorações rock’n’roll dos Riding Pânico, a banda que atravessou todas as edições do Milhões de Festa. Que nos levou dos Orange Goblin à ficção científica em pista de dança dos franceses Zombie Zombie, daí ao delírio transe rock de Bollywood dos Jibóia Experience, daí ao hip hop queer de Mykki Blanko e dele ao festim de cumbia digital de El G.

Estamos perto da uma da manhã e há um inglês altíssimo em palco a aplaudir o muito público que o aplaude. No final de cada canção, não se cansara de elogiar o que via – gente aos saltos, heabanging em movimento sincronizado, mosh pit abrindo clareiras entre o público, pessoal muito entusiasmado e muito feliz com o que estava a viver. O inglês é Ben Ward, vocalista dos Orange Goblin, os autores do concerto mais celebrado no encerramento do Milhões de Festa. São uma banda absurdamente clássica: riff atrás de riff, grito gutural para acordar as gentes, um baixista a marcar o balanço escondido atrás do cabelo até aos pés (exageremos), solos como explosão de electricidade, aceleração thrash e “let’s go crazy, people”. Os Orange Goblin têm duas décadas de vida em cima, chegaram ao Milhões de Festa no decorrer de uma digressão, como contámos, conturbada, e não houve tempo para lamentações.

Isto é a celebração efusiva de um certo espírito de contracultura que encontramos na génese do rock’n’roll, liderada por um homem que bebe copos de cerveja como se fossem shots e que canta sobre Cities of rust, que incita Round up the horses e se debruça sobre o suporte de microfone para cantar Made of rats. E depois, enquanto agradece ao público por ser o melhor que encontrou em toda a viagem mundo fora da digressão (e insiste que é mesmo verdade, que não está a fazer número), enquanto lança “fuckings” a torto e a direito por não conter a emoção, pede desculpa pelo abuso do vernáculo já que estão menores a assistir. Ben Ward é um senhor. E a sua banda, guardiã do bom velho riff, rock à antiga, heavy metal à séria, foi responsável pelo concerto que maior entusiasmo gerou na despedida do Milhões de Festa. “Orange fucking Goblin, baby!” – não há como não os respeitar.

A catarse

Na noite que nos mostrou uns Zombie Zombie que, com bateria dupla frente ao palco e manipulador de electrónica (e saxofonista ocasional) no estrado atrás dela, partem de dinâmicas electro para criar um festim rítmico com as galáxias como destino final (acompanhamos com prazer esse Rocket number 9 em direcção a Vénus, mas aquilo que é contagiante a início acaba por parecer repetição de uma mesma fórmula ao fim do concerto); nesta noite em que a Jibóia Experience encerrou o palco principal com mais um momento irrepetível com chancela Milhões de Festa (a versão big band da criação de Óscar Silva, poderosa batida global ou rock orientalizado que a predominância da vocalista Ana Miró aproximou mais do que o desejável do cliché “étnico”, foi uma “encomenda” do festival); esta noite, recuperemos, teve no primeiro concerto do Palco Vice uma aparição breve mas de uma intensidade que marcará a memória do festival.

Um percussionista marcando o ritmo digital (também seria guitarrista por um curto momento) e um teclista e operador da matéria sintetizada a definir um ambiente de rave subterrânea, de concerto marginal (pensamos nos Suicide mais que uma vez). Ao centro, o homem de t-shirt branca, de costas para o público, braço direito movendo-se tenso à marcação da batida. O homem é Alex Zhang Hungtai e aqueles eram os Dirty Beaches, autores recentes do óptimo Drifters/Love is the Devil. Há algo de catártico nesta experiência, uma sensação de neurose que será sublimada pela cadência em crescendo do ritmo e pela intensidade do som (da guitarra blues samplada ao ataque noise, do balanço na fronteira do hip hop ao techno revolvendo-se em destroços sonoros). É impossível ficar indiferente a um concerto assim.

Alex Zhang Hungtai, presença misteriosa, não olhará o público uma única vez. A cabeça rodopia, o corpo balança cada vez mais furiosamente e, cá em baixo, aquele mundo que vemos nascer perante nós (os Suicide num filme de David Lynch será a descriação óbvia) conquista-nos, desarma-nos irremediavelmente. Não é possível ficar indiferentes a isto, repetimos. Bem dito festival que nos oferece momentos assim. Este que acabou domingo, chamado Milhões de Festa.