O Papa na favela: não haverá paz se a periferia for abandonada

Um campo da bola que é um lamaçal, chuva sem parar, em volta barracos: é o cenário à espera do Papa Francisco, na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro.

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Estamos muito longe do estilo carioca Zona Sul. Aqui é rio cheio de lixo, enchente na chuva, ruínas, ratos, território durante décadas abandonado pelo Estado, controlado pelo tráfico, onde as igrejas — a católica e as evangélicas — disputam o conforto dos pobres com som bem alto.

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Estamos muito longe do estilo carioca Zona Sul. Aqui é rio cheio de lixo, enchente na chuva, ruínas, ratos, território durante décadas abandonado pelo Estado, controlado pelo tráfico, onde as igrejas — a católica e as evangélicas — disputam o conforto dos pobres com som bem alto.

“Tá bem dividido, católicos e evangélicos”, resume Robson, “bem dividido!”, insiste Adriana: marido e mulher, ambos mulatos, 36 e 34 anos, ele “operador de navios”, ela “do lar”, católicos de irem à missa a cada domingo.

Pé na lama é o normal aqui, as crianças saltam as poças, até um senhor de muletas, velhos, velhas. Anormal é o aparato de filme: snipers em cima dos telhados, helicópteros zumbindo, 600 polícias militares para a segurança do Papa, 400 polícias militares no interior da favela, exército ao longo dos acessos, tropa de elite a toda a volta.

“Quem está feliz aí balance o guarda-chuva!!!”, pede o animador. Centenas de guarda-chuvas balançam. “Francisco eu te amo!!”, continua o animador. “Francisco eu te amo!!”, respondem os guarda-chuvas. Até que a chuva quase pára e o povo de trás consegue convencer o povo da frente a fechá-los.

Só então fica à vista o palanque, às riscas amarelas, como pano de circo ou de gelados, os padres lá em cima, de negro e vermelho. “Somos as tuas ovelhas, Francisco de Deus, tu és o nosso pastor”, canta o animador, o povo e, no meio dele, a negra Kátia, operária numa fábrica de costura, menos de 300 euros de salário, vinda de uma favela em Engenho da Rainha, nomes assim, do tempo colonial. O Brasil é tudo o que depois disso avançou, e tudo o que não avançou,

Manguinhos existe desde 1940, e os migrantes nordestinos e mineiros cruzaram-se aqui com imigrantes portugueses. Os netos de todos continuam a cruzar-se nesta periferia só recentemente atendida por uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora).

Passa das 11h30. Francisco está há mais de meia hora na favela, chegou um pouco antes do previsto, visitou a capela, entrou numa casa. O grande momento será agora, no campo da bola. E aí vem ele, a subir para o palanque, já a abençoar e a sorrir, enquanto o animador incita todos a cantar mais alto. São bem uns dois minutos de música, fechando com “Francisco eu te amo!!”, e incluindo uma bandeira do Flamengo.

Um jovem casal da favela faz o discurso de acolhimento, com o marido a falar pelos dois. Pede licença para chamar Pai Francisco ao Papa, fala-lhe nos “muitos confrontos armados” que a favela viu, e no “descaso das autoridades, como durante as enchentes”, sendo que “até hoje isso nem foi discutido com os moradores para encontrar uma solução”.

O Papa cumprimenta o casal, toma o microfone, e, tratando a plateia por “queridos irmãos e irmãs”, dá-lhe um alegre “bom dia!”, a que todos respondem “BOM DIA!” Então conta que quando começou a planear a visita ao Brasil queria “bater em cada porta, dizer bom dia, pedir um copo de água fresca, beber um cafezinho…” Delírio no campo: “ca-fé-zi-nho”, repetem as pessoas, imitando o sotaque argentino do Papa. Mas ele ainda vai concluir a frase: “… não um copo de cachaça.” Gargalhada geral.

Como não podia ir a todo o lado, vem aqui, “grato pela linda acolhida”. E prosseguindo a sedução popular: “Se alguém bate na vossa porta, vocês sempre dão um feijão, porque sempre se pode colocar mais água no feijão, não é?” Eleva a voz: “Sempre?” O campo da bola responde: “SEMPRE!!!”

Então vem a parte política: “Queria lançar um apelo a todos que possuem mais recursos, às autoridades públicas e a todas as pessoas de boa vontade comprometidas com a justiça social: não se cansem de trabalhar para um mundo mais justo e solidário. Não é a cultura do egoísmo, do individualismo aquela que constrói e conduz a um mundo mais habitável, mas sim a cultura da solidariedade.”

Não há nenhuma menção directa aos protestos no Brasil, mas há um alerta explícito: “Nenhum esforço de pacificação será duradouro, não haverá harmonia e felicidade para uma sociedade que ignora, que deixa à margem, que abandona na periferia parte de si mesma.” Sublinha: “Porque somos irmãos, ninguém é descartável.”

Último recado para os jovens que “muitas vezes se desiludem com notícias que falam de corrupção”: “não percam a confiança” porque “a realidade pode mudar, o homem pode mudar”.

A chuva voltou forte e os ambulantes circulam a vender capas. Até Copacabana, onde ao fim da tarde o Papa estará, será o caos no trânsito.